Saída para a crise está na concertação – não conciliação entre as elites

Saída para a crise está na concertação – não conciliação entre as elites

Tarso: “É possível prever que o massacre midiático a que a esquerda está sendo submetida, num novo contexto, começará a ficar transparente à sociedade, pois a oposição atual terá de dizer, claramente, o que fazer da economia e do Estado, para “retirar o país da crise”. E ela certamente apresentará medidas extremas que, num país desigual como o nosso, farão as amplas massas assalariadas, inclusive os seus setores médios, ao perder pouco, praticamente perderão tudo, ao contrário dos países socialdemocratas, nos quais a perda do padrão de vida não leva, necessária e diretamente, à miséria como nós a conhecemos.”Em texto publicado originariamente no site Carta Maior, o ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT-RS), disseca o ambiente atual de crise, alertando para os perigos neofascistas e para o apoio tácito que eventuais golpistas irão receber da mídia oligopolizada – caso o golpe contra a presidente Dilma Rousseff se concretize.

A crise não é só brasileira, escreve ele, não nasceu durante os mandatos em que o PT está à frente do governo federal, e a porta de saída está no entendimento entre as forças políticas, que deverão esquecer temporariamente seus objetos de curto e médio prazo para que a saída da crise seja encontrada dentro de um ambiente democrático e não numa antessala de regime autoritário.

Vale a pena ler até o final, e refletir a respeito.


Um pouco mais além da crise (e do despenhadeiro)
Tarso Genro

Esse anúncio (da História) “revela ao homem comum, na vida cotidiana, que é na prática que se instalam as condições de transformação do impossível e possível”, diz José da Souza Martins, no seu belo livro “A sociabilidade do homem simples”. Faço esta citação, porque penso que estamos num daqueles momentos muito especiais, em que Cotidiano e História se transformam, todos os dias, um no outro. E a crise política que estamos vivendo não é mais simplesmente uma crise de governo, mas é uma crise do projeto democrático, politicamente consolidado em 88, na qual cada momento do seu desenvolvimento já demanda soluções possíveis para o futuro. Entendo que cada movimento político, portanto, que façamos hoje, implicará em maiores ou menores dificuldades e custos no futuro, para superar a crise por dentro da democracia.                                                                                        

Tenho acompanhado dezenas de bons artigos e entrevistas, em regra publicados nos “blogs” livres do controle da grande imprensa – excepcionalmente na grande imprensa-  sobre a crise que atravessa o país. Esta crise tem alguns componentes claros, que devem ser contrastados com outros períodos históricos, para que não declaremos, precipitadamente, esta época como o “fim dos tempos” do projeto democrático moderno. Ele vem lá da Ilustração, passa pelo Estado Absolutista e vem se construindo, nos últimos 150 anos, principalmente, como Estado Democrático de Direito. Considero as lutas socialistas e os experimentos socialistas e socialdemocratas, neste período, como expressões deste grande movimento histórico da modernidade, que tem ciclos de avanços e recuos extraordinários. Considero que, pelo menos aqui no país, estamos num momento defensivo e de recuo, tanto na questão da República, como na questão da Democracia.

A apropriação do Estado pelo capital financeiro, em escala global, e os seus reflexos nos países endividados, como o nosso; a politização partidarizada  da alta burocracia estatal, que responde, diuturnamente, à agenda da mídia, dominada por uma dezena de famílias; a reversão programática do governo federal, adotando o programa derrotado nas urnas, exigido pelas agências de risco; a persecução criminal, dirigida especialmente contra o PT (não se sabe, ao certo, se incentivada pela mídia ou só exacerbada por ela), combinada com a criminalização geral da política; o amortecimento  visível dos processos de corrupção, iniciados  contra empresas midiáticas e os próceres do PSDB; e o apagamento, da nossa memória social, que os processos contra a corrupção em curso apanham esquemas de mais de vinte anos, que nunca foram investigados,  porque os órgãos de controle do Estado simplesmente não operavam – todos estes fatos – têm embasado as análises a que refiro, que, no futuro, servirão para a anatomia de uma época e das suas consequências históricas para o país.

 Pretendo, com o presente texto – sem me opor às análises em regra bem feitas dos que tem escrito sobre o assunto – tratar da crise adiantando um debate mais estrutural, sobre as lições que ela já está deixando e os problemas que ela enseja. Sugiro que a crise atual, para não descambar para uma situação violenta, precisa ter soluções encaminhadas para uma Concertação Estratégica sobre o nosso projeto democrático e social, ou para uma Assembleia Nacional Constituinte originária, capaz de repactuar o país. Explico-me: “concertação” não quer dizer conciliação entre as elites, mas negociação política de forças majoritárias, com a formação de blocos sociais e políticos fortes, capazes de retomar a limpidez da ação política, para evitar a  situação de anomia, que se insinua. O acordo, dela derivado, pode resultar inclusive na convocação de uma Constituinte; e o acordo, para uma Constituinte, pode, eventualmente, preceder a “concertação”, estimulada pelo reconhecimento, não da debilitação, mas da deformação dos poderes de Estado, que já se faz sentir no dia-a-dia, hipótese em que esta,  a  “concertação”, se realizaria por dentro do próprio processo constituinte.

 Uma composição desta natureza só ocorre  – como ocorreu no Pacto de Moncloa, na Espanha, e na Revolução dos Cravos, em Portugal – quando as distintas forças em confronto reconhecem – no curso da luta política –  que não tem condições de levar adiante, de forma plena, os seus ideais programáticos. E que, se tentarem fazer isso, será gerada uma situação que lhes colocará numa posição ainda mais distante da realização dos seus objetivos.  E mais: que o objetivo a ser atingido – com a “concertação” ou um processo constituinte (ou com um se convertendo no outro) – lhes colocará numa situação melhor, para retomarem, no futuro, o que entenderem como seus ideais máximos.  Trata-se, portanto, de colocar novamente a política, mais além dos acordos imediatos de sobrevivência do governo ou dos pactos espúrios para derrubá-lo, no centro da crise: pensando na nação e não na mesquinha sobrevivência imediata dos partidos e dos mandatos atuais.

Ralph Dharendorf defende que os direitos da cidadania devem ser pensados num padrão de “círculos concêntricos”, mas que há “um núcleo duro de direitos fundamentais e indispensáveis”, tais como “a integridade pessoal, o devido processo legal e a liberdade de expressão (…) “sem os quais o império da lei se reduz a uma casca vazia”. Talvez o preenchimento mínimo desta “casca” –de que nos fala Dharendorf – seja a diferenciação entre a democracia, como mero ritual, em que a política e a vida sejam só uma questão do mercado, e a democracia, como “res pública”, transpassada por instituições que socializem minimamente a riqueza, o direito à informação não manipulada, que garantam um devido processo legal regular e a livre circulação da opinião. Trata-se, em última análise, de um passo forte da democracia para a sua expressão republicana – politizada e educativa –, que promova uma mudança de atitude, tanto dos cidadãos em relação ao Estado, como do Estado em relação aos cidadãos. O que não se consegue, senão através da política e dos partidos.

 É certo que uma proposta como essa só entrará em pauta quando a crise atual atingir o seu desfecho ou, eventualmente, o processo político seja totalmente bloqueado pela radicalização de posições em confronto. É possível prever que o massacre midiático a que a esquerda está sendo submetida, num novo contexto, começará a ficar transparente à sociedade, pois a oposição atual terá de dizer, claramente, o que fazer da economia e do Estado, para “retirar o país da crise”. E ela certamente apresentará medidas extremas que, num país desigual como o nosso, farão as amplas massas assalariadas, inclusive os seus setores médios, ao perder pouco, praticamente perderão tudo, ao contrário dos países socialdemocratas, nos quais a perda do padrão de vida não leva, necessária e diretamente, à miséria como nós a conhecemos. É um momento que será, certamente, muito mais intenso e violento do que aquele que presenciamos nas jornadas de junho e dele não se sairá com a mera repressão ou através de acordos que não sejam cumpridos.

Este momento – que ainda não se sabe quando acontecerá – ou poderá promover um recrudescimento autoritário na nossa democracia imberbe – sem necessariamente acabar com a instituições democráticas atuais – baseado em técnicas de dominação burocrática de caráter neofascista  – perfeitamente assimiláveis por um conluio da grande mídia com alguns aparatos de Estado –,  ou poderá promover um passo enorme da democracia – como ritual formal que é –  em direção ao seu  conteúdo (republicano), de que nos fala Dharendorf. Lembremo-nos que este processo de busca da República começou lá na campanha das “diretas já”, também no âmbito de uma crise econômica grave, que está reposta pela crise atual.

Hoje, partem da sociedade civil diversos manifestos, documentos programáticos, propostas imediatas para sair da crise atual, que não só não estão sendo considerados pelo governo atual, como são considerados irrelevantes pelos “especialistas” da grande mídia.  A oposição silencia sobre eles, também. Mas o estranho e grave é o quase silêncio dos partidos e facções de partidos do campo da esquerda que, pelas suas direções, têm se ocupado pouco em unificar um campo político novo, que vá mais além da conjuntura atual. Uma conjuntura, aliás, sobre a qual eles têm tido pouca influência, pois é nela que o governo federal (cuja imaginação política não supera o taticismo de manter o ajuste), faz todas as concessões à direita do PMDB, que hoje já majoritariamente aderiu à oposição.

Quando os políticos perdem o controle da política ou não a fazem com níveis mínimos de decência programática, outras forças tomam conta dela com objetivos nada republicanos, para proteger seus interesses ilegais ou para fazer passar seus interesses de classe, por fora da democracia. É emblemático este fato: em maio de 1970, um enorme grupo de trabalhadores da construção civil, usando capacetes, atacaram violentamente uma manifestação estudantil pacífica, que ocorria no centro de “Wall Street”, em Manhattan, contra a Guerra  do Vietnã. Deixaram dezenas de estudantes e outros manifestantes feridos. À primeira vista, parecia ser a “classe operária americana”, a favor da guerra, mas, na verdade, tratava-se de uma ação planejada por Peter Brennan, Presidente do Sindicato de Nova York, vigarista sindical apoiador de Nixon (minoritário no movimento sindical americano), cuja maioria não apoiava a guerra. Alguma semelhança com ações violentas que ocorrem no Brasil, cuja origem é uma extrema-direita fascista que, em regra, se põe à frente dos movimentos da classe média, para dizer que “sonegação não é crime, é legítima defesa”, tudo retratado de forma “imparcial” pela mídia nativa?

O STF já deu uma grande contribuição à revalorização da política no país, proibindo o financiamento empresarial dos partidos. É um momento positivo para fazer política de “baixo para cima” e revalorizar os pleitos eleitorais. Marx disse que as revoluções são as locomotivas da história, lembra Benjamim, aduzindo este que “as coisas podem se apresentar de maneira diferente”. Pode ser – diz ele – que as revoluções sejam, às vezes, o ato pelo qual a Humanidade puxa os “freios de emergência da locomotiva da história”, para não cair no despenhadeiro da barbárie. Como o caminho que estamos percorrendo nos leva, cada vez mais, à violência e à anomia, “puxar os freios da História”, só com mais democracia, com mais autenticidade dos partidos democráticos e com mais política.

 

Não será isso que disseram, majoritariamente, os movimentos de junho?

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