Entre 1990 e 2013, o número de assassinatos de crianças e adolescentes até 19 anos no Brasil passou de 5 mil para 10,5 mil por ano — 28 por dia. Essa violência tem alvo conhecido: hoje, um jovem negro tem 2,6 vezes mais chances de ser vítima de homicídio que um jovem branco. Dos 56 mil assassinatos registrados no País em 2012, 49% das vítimas eram jovens e, dessas, 77% eram negras ou pardas.
Esses números estarrecedores vêm sendo levantados pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que apura o assassinato de jovens no Brasil, que tem o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) como relator. Neste artigo, publicado originalmente no site Empório do Direito (emporiododireito.com.br), a assessora jurídica da Bancada do PT no Senado, Tânia Maria Oliveira, analisa os relatos que chegaram à CPI em audiência pública realizada na última sexta-feira (6), no Rio de Janeiro.
Mães do Rio e seus filhos mortos: a faceta mais cruel de um sistema de justiça seletivo e falido – Por Tânia M. S. Oliveira
“A violência que fala é já uma violência que procura ter razão; é uma violência que se coloca na órbita da razão e que começa já a negar-se como violência.” (Paul Ricoeur)
Era pra ser apenas mais uma reunião pública de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que busca expor uma das chagas da nossa contemporaneidade: o assassinato de jovens. Dados levantados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF mostram que no Brasil, entre 1990 e 2013, o número de assassinatos de crianças e adolescentes até 19 anos passou de 5 mil para 10,5 mil por ano — 28 por dia. No relatório “Você matou meu filho”, divulgado no início de agosto deste ano, em que apresenta investigação exclusiva sobre execuções extrajudiciais, homicídios e outras violações de direitos humanos praticados pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro, a Anistia Internacional apontou que, após seis anos de quedas consecutivas, o número de mortes em ações das polícias voltou a crescer entre 2013 e 2014. Em dez anos, a partir de 2005, foram registrados 8.466 homicídios do tipo no Estado, sendo 5.132 apenas na capital fluminense[i]
São números que deveriam tirar nosso sono.
Era pra ser apenas mais uma reunião. Mas quando a CPI do Senado sobre assassinato de jovens realizou na sexta (06/11) audiência pública na sede da OAB, no Rio de Janeiro, os números ganharam rostos. Os brilhantes expoentes da academia e do sistema de justiça, políticos e entidades da sociedade civil foram coadjuvantes. Presentes, dezenas de mães de meninos mortos pela polícia militar do Rio de Janeiro fizeram questão de dar seu depoimento. Os nomes se sucediam: Jonathas, Eduardo, Hugo Leonardo, Cristian…em narrativas e gritos de dor muitas vezes somado às lágrimas. Relatos dilacerantes. Em determinado momento me perguntava se essa repetição, o reencontro com os fatos pela oralidade de algum modo ajuda a expurgar a dor ou é combustível para revivê-la. Noutros ainda chorei pensando no medo de algum dia sentir a mesma terrível dor, ainda que a única coincidência de meu filho, branco e incluído, com os meninos mortos seja a adolescência.
A morte de crianças e adolescentes por meios violentos é um acontecimento tão grave que se não há palavra que sirva, tampouco o silêncio abarca. O que dizer, então, quando essas mortes acontecem pelo braço armado do Estado? Os episódios, para além do sofrimento que evocam, revelam algumas das mais bárbaras características da violência de nossa época. E nos torna, a todos, responsáveis em alguma medida, por ação ou omissão.
A notícia de que a conclusão da Polícia Civil no inquérito sobre a morte de Eduardo de Jesus foi pelo arquivamento caiu como uma bomba às vésperas da audiência pública. E por óbvio suscitou um debate de grandes proporções. Eduardo tinha apenas 10 anos de idade quando foi morto, no dia 02 de abril último, por um tiro de fuzil disparado por um policial militar, enquanto brincava com um celular em frente à sua casa no conjunto de favelas do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio. O crime aconteceu à luz do dia e os policiais estavam a cerca de 5 metros de distância do menino. A conclusão do inquérito encaminhado ao Ministério Público é no sentido de que os policiais agiram em situação de risco e em legítima defesa e, em consequência, não devem ser indiciados.
A tese defendida pela Polícia Civil causa espanto, indignação e vergonha. É a declaração aberta da ausência de qualquer controle do uso da força letal pelo aparato policial, de despreparo e de que há, efetivamente, uma prática própria de atuação em favelas e periferias, vistas como territórios de exceção.
O silêncio das autoridades, do Estado do Rio e fora dele, sobre esse caso indica a tolerância com a prática, que por sua vez significa indiferença. E se alguma ação da comissão parlamentar de inquérito se mostra factível ela se apresenta na forma de pressionar o Estado, nesse caso o Ministério Público, para que o caso da morte de Eduardo não seja arquivado. Ao que tudo indica há o desejo e o empenho político para que isso ocorra. O Senador Lindbergh Farias, relator da CPI, marcou audiência com o Procurador Geral do Estado Marfan Martins Vieira para a próxima semana para tratar do caso. Espera-se que seus argumentos sejam convincentes e que haja sensibilidade do outro lado da mesa.
Não permitir que a morte de um menino de 10 anos de idade, desarmado, por policiais em serviço seja tratada dessa forma desprezível pelas autoridades é tarefa que diz respeito ao direito humano a uma investigação adequada, às garantias judiciais e a um julgamento imparcial. O elevado índice de impunidade no Brasil dos violadores estatais é um fator determinante para a continuidade do desrespeito aos direitos humanos no país.
A questão maior, contudo, é que principiologicamente já há um equívoco quando os casos são tratados assim, um a um. Todos os episódios em que crianças e adolescentes são mortos pela polícia precisam ser assumidos como tragédias que são parte abominável de nossa existência, começando pelo reconhecimento de que a imensa área cinza entre o preto e o branco, o bem e o mal, o certo e o errado na lógica da violência contra negros e pobres nas zonas de periferia do Rio de Janeiro é produzida pela higienista e fracassada guerra às drogas. É em virtude dela que se ocupa e busca controlar territórios inteiros, causando a reprodução cotidiana da hostilidade entre policiais e moradores.
Há um imenso espaço para reflexão e há, sobretudo, a necessidade de uma vontade e força política para querer mudar a realidade em suas matrizes condutoras. Resta ocupá-lo. Querer sufocar o debate ou tergiversar sobre a ligação das mortes com o modelo de repressão dado à questão das drogas é fazer política de segurança de fachada.
Tânia M. S. Oliveira é Mestre e Pós-graduada em Direito. Pesquisadora do GCcrim/Unb. Assessora jurídica no Senado