O STF não votou para manter Renan. Votou para manter a votação da PEC 55. Fosse presidente do Senado Eduardo Cunha ou Fernandinho Beira Mar, com igual capacidade de assegurar a votação e a “governabilidade”, o resultado teria sido idêntico.
Quem não entende isso, não entende nada do que se passa no país. O processo golpista, ainda em curso, jogou na lata de lixo o voto e a soberania popular, sustentáculo legitimador da democracia e suas instituições. Parafraseando Dostoievsky, com a morte da fonte do poder democrático, tudo se tornou permitido. Instaurou-se uma anomia institucional que dá margem às mais grosseiras barbaridades.
Temos um presidente impopular, ilegítimo e pateticamente fraco, com um ministério composto de réus e candidatos a réus. A turma que queria “estancar a sangria” compõe hoje um governo hemofílico, que, ante qualquer arranhão, sangra profusamente em praça pública.
Temos um Congresso desacreditado por completo, que é bovinamente conduzido pela opinião publicada, delações da Lava Jato e, sobretudo, pela agenda retrógrada imposta pelo “mercado” para “tirar o país da crise”. Eventualmente, o Legislativo curva-se também às eventuais chicotadas da “judicialização” do processo político.
E temos um STF pusilânime e errático, que muda sua interpretação da Constituição e das leis, conforme as conveniências políticas. Se a ocasião exige que se viole o princípio constitucional da separação entre os poderes e se invada a seara do Legislativo, que se faça, como se fez nos casos Eduardo Cunha e Delcídio, com a agachada anuência dos poderes invadidos. Já se a “governabilidade” exige o refreamento de seu poder e o respeito ao outro poder, que se faça também, como se fez no caso Renan. Distinguir entre o certo e o errado não importa. Importa somente distinguir o interesse a ser protegido.
Ao contrário do que se diz, o STF tem sido admiravelmente coerente. Coerente em suas baixas motivações. Quando a “governabilidade” exigiu o afastamento de Cunha, que havia se tornado um estorvo embaraçoso, o STF o afastou. E quando a “governabilidade” exigiu a manutenção de Renan, manteve-se. As leis, como as salsichas… As interpretações, como as linguiças…
O fato é que, devido ao processo golpista, ao neoudenismo rampante e à criminalização da política, as instituições democráticas estão em estado de amplo descrédito e profunda fragilidade. A crise política conjuntural foi substituída por uma crise institucional estrutural.
Cada vez mais, as decisões fundamentais para o Brasil passam à margem dessas instituições, que se transformaram em meras correias de transmissão dos ditames emanados de quem detém o poder real no país: o grande capital internacional e nacional e seus sócios instalados na mídia oligopolizada, em setores estratégicos do aparelho de Estado, como procuradorias, e no sistema de representação. Cada vez mais, essas decisões estratégicas não são tomadas na Esplanada dos Ministérios, mas na Avenida Paulista, talvez em conluio estreito com a Pennsylvania Avenue.
Parece que não há mais mediações entre o poder econômico e o poder político-democrático. A relação tornou-se crua, direta e de definitiva e absoluta subserviência do segundo em relação ao primeiro. Com efeito, no Brasil de hoje o Estado está perdendo aquilo que Althusser e Poulantzas denominavam de “autonomia relativa”, isto é, a capacidade de atuar e decidir levando em consideração os distintos interesses presentes no bloco no poder. Temos um Estado fragilizado que, sem o amparo do voto popular, flutua, a deriva, num vácuo de legitimidade e poder.
Parece que todos os seus representantes não têm mais mandatos representativos, mas sim mandatos imperativos. Acovardados e fragilizados, obedecem cegamente a tudo aquilo que a “opinião publicada” quer e a “governabilidade” do capital exige. Juízes de primeira instância, procuradores e formadores de opinião, desde que afinados com agenda retrógrada exigida pelo capital, têm muito mais poder que presidentes, ministros e senadores. No Brasil, o Estado Democrático derreteu no ácido do golpismo.
O que interessa, o único que interessa, é o cumprimento estrito da agenda reacionária que vai rebaixar o “custo Brasil” para recompor as taxas de lucro, assegurar o pagamento das maiores taxas de juros do mundo e atrair investimentos do capital ávido por novas oportunidades de grandes negócios, em um mundo assolado por uma recessão que já dura quase uma década.
Qualquer obstáculo ao cumprimento dessa agenda imperativa, quase divina, será removido sem a menor cerimônia. Direitos previdenciários, direitos sociais e direitos trabalhistas. O Estado de Bem Estar e o próprio Estado Democrático de Direito.
Com a morte da soberania popular e o derretimento do Estado e suas instituições democráticas, obedece-se cegamente a Mamon, o deus do dinheiro. E, com Mamon, ao contrário do deus de Dostoievsky, tudo é permitido. Até mesmo manter Renan, desdizendo o que foi dito e desfazendo o que foi feito. Manter Renan, independentemente do que diga ou não a Constituição.
Renan, pouco antes de ser legitimado pelo STF, disse que a “democracia não merece ter esse fim”. Pois teve. Votando pela PEC e o austerícidio, o STF votou pelo suicídio constitucional e o fim da democracia.