Durou pouco a ilusão dos desinformados de que Trump, com seu America First, iria se abster de fazer intervenções militares unilaterais e adotar uma política mais negociadora no Oriente Médio, cooperando com a Rússia no combate ao terrorismo e até admitindo a continuidade do regime Assad, na Síria.
Trump será melhor que Hillary, diziam. Balela. A política externa do EUA tem inércia própria.
Bastaram três meses e uma pressãozinha interna para que todas essas ilusões ridículas fossem às favas. O ataque de ontem contra base militar de Al Syairat, com 59 mísseis tomahawk, feita à margem do Conselho de Segurança da ONU, demonstra que os “falcões” e os neocons tomaram as rédeas da política externa dos EUA.
A escusa para a ação, que rompe com aliança tácita com a Rússia no conflito sírio, foi o ataque com gás neurotóxico a Khan Shaikhoun, uma pequena base da Al-Qaeda, que deixou cerca de 70 mortos.
Os EUA e a solícita imprensa ocidental, inclusive a brasileira, foram rápidos em culpar o regime Assad e a Rússia pelo ataque com gás. De fato, houve um ataque aéreo a esse reduto da Al-Qaeda, mas não há provas de que o gás tenha vindo desse ataque.
Todos os demais atores militares que estão na Síria, EUA, Al-Qaeda, Israel, curdos, turcos etc. têm acesso a armas químicas. Os EUA, que usaram armas químicas em seu brutal ataque a Fallujah, na guerra do Iraque, com a complacência e o silêncio da mídia, ainda retém 12% do seu arsenal químico, o suficiente para envenenar todo o Oriente Médio. Nesse contexto, é difícil dizer ao certo de onde veio o ataque químico.
Mas certamente o suposto uso de armas químicas por parte de Al Assad não faz o menor sentido. Assad não teria nada a ganhar, mas tudo a perder, com um ataque desse tipo.
Em primeiro lugar, porque Assad, com auxílio da Rússia, está ganhando a guerra. O ISIS está em retirada e o regime domina agora toda a parte central e estratégica do território sírio.
Em segundo lugar, porque Assad vinha conseguindo superar seu isolamento diplomático. A opinião pública, em muitos países ocidentais, começava a perceber que o apoio que os EUA, seus aliados do Golfo e a Europa vinham dando aos grupos terroristas que atuam na Síria propagava a crise humanitária naquele país, estimulava o terrorismo e criava uma crise de refugiados de dimensões monumentais. O próprio Trump tinha declarado que o destino de Assad dependeria exclusivamente da população síria, dando a entender que renunciava à derrubada de Assad a qualquer custo.
Em terceiro lugar, porque o alvo do ataque não tem relevância estratégica. Trata-se de um pequeno reduto da Al-Qaeda, longe de Damasco, como dezenas de outros em território sírio.
Nesse contexto, porque o regime Assad teria interesse em fazer um ataque químico que só o prejudicaria?
O fato concreto é que, em 2013, após o ataque com armas químicas a Ghouda, um subúrbio de Damasco, quando o regime corria o risco de desparecer, Assad foi forçado a destruir seu arsenal químico. A Rússia, com a supervisão de inspetores das Nações Unidas, confiscou e destruiu o arsenal.
Contudo, os EUA alegam, sem apresentar nenhuma prova ou indício, de que Damasco havia preservado parte do arsenal químico, que teria sido estocado justamente na base de Al Syairat, atacada ontem.
Isso também não faz muito sentido, pois essa base está submetida à supervisão de inspetores da ONU e se situa numa região na qual o conflito ainda é intenso. Diga-se de passagem, enquanto a base era atacada pelos mísseis, um grupo da Al-Qaeda, atacou a base por terra. Os sírios teriam à sua disposição locais e bases mais bem aparelhadas para estocar o suposto arsenal químico. Além disso, nos relatórios dos EUA sobre os danos causados pelo ataque com mísseis, não há nenhuma menção à destruição de depósitos de armas químicas.
Segundo as testemunhas do ataque químico, as pessoas sentiram um “cheiro podre” e viram uma “fumaça esverdeada” no local. Ora, o gás Sarin, assim como outros gases neurotóxicos, em suas versões industrializadas e puras, não têm cheiro nem cor, daí a sua grande periculosidade.
Tudo indica, assim, que no ataque a Khan Shaikhoun foi utilizada uma forma impura e “artesanal” desse gás, feita com precursores químicos diferentes, o que lança suspeitas sobre os inúmeros grupos terroristas que atuam na Síria. Portanto, é possível, como alega a Rússia, que o bombardeio aéreo tenha liberado um pequeno depósito químico de gás da própria Al-Qaeda. De forma muito conveniente, o ataque com gás foi filmado e fotografado praticamente ao vivo, causando grande comoção mundial.
Independentemente dessas considerações, o fato concreto é que Assad e a Rússia emergem com os grandes perdedores nesse episódio e os EUA, as ditaduras da Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes, aliadas dos EUA, Israel e Al-Qaeda, que domina hoje a oposição a Assad, surgem como os grandes vencedores.
Trump também emerge como ganhador. Sua popularidade, mesmo após poucos meses de governo estava extremamente baixa. Agora, com o ataque contra Assad e o desafio a Putin, deve subir bastante. Além disso, o rompimento com a Rússia na Síria tende a desmontar o RussiaGate, episódio no qual Trump e seus assessores são acusados de usar o serviço secreto russo para espionar democratas.
Porém, a grande perdedora é a paz, ou a possibilidade dela.
Essa reviravolta sepulta qualquer possibilidade de uma negociação de paz na Síria. Os EUA voltaram a apostar na deposição de Assad a qualquer custo.
Com efeito, um dos objetivos estratégicos dos EUA, de Israel e dos regimes do Golfo Pérsico, na região, é depor Assad, de forma a enfraquecer o Irã e o Hezbollah, que tem forte presença no Líbano. Mas o grande objetivo tem a ver com a geopolítica global: enfraquecer a Rússia de Putin. Assad é o grande aliado da Rússia no Oriente Médio. É lá que a Rússia tem a sua principal base naval no Mediterrâneo: Tartus.
Trump apontou para a possibilidade de revisão, ao menos parcial, dessa estratégia. Agora, tudo mudou.
O problema é que derrubar Assad é apenas o primeiro passo de um grande quebra-cabeça. A derrubada de Assad fatalmente implicará a divisão territorial da Síria, sua extinção como país. A parte norte do país provavelmente se transformaria num território curdo, sob tutela da Turquia. Israel provavelmente se apropriaria definitivamente e totalmente das colinas de Golã, fonte de boa parte da água doce desse país. A parte leste, com o ISIS em retirada, provavelmente seria apropriada pelo Iraque.
O problema maior, nesse contexto, é o que fazer com a Al-Qaeda, que hoje domina a maior parte dos grupos de oposição a Assad. Na realidade, ninguém sabe. Provavelmente, o que restar da Síria se transformaria numa nova Líbia, um território selvagem dominado por diversos grupos armados em conflito. Isso pouco importa para EUA e aliados. O importante é que seus objetivos estratégicos sejam atingidos.
Trump dizia que não ia promover guerras, ia promover empregos. Mentiu.
Percebeu rapidamente que promover intervenções militares é algo fácil e popular, ao passo que promover empregos é difícil.
Sua tentativa de criar empregos ressuscitando indústrias velhas e poluentes, como a do carvão, e atacando o México e a China fracassará. Os empregos de seu eleitorado foram destruídos, em sua maioria, pela automação e a modernização das indústrias, não por mexicanos e chineses.
Seus eleitores blue collars, os deserdados do capitalismo “financeirizado” e globalizado, que ele sempre apoiou, só encontrarão empregos servindo como bucha de canhão para a máquina de guerra do Império. O emprego para os “não-empregáveis” virá da guerra. Nesse sentido, a guerra resolve a política e, ao menos parcialmente, a economia.
Trump é um engodo perigoso. Despreparado, muito conservador e imprevisível, não é apenas um barril de pólvora prestes a explodir. É um arsenal nuclear prestes ser detonado. Dificilmente fará a Terceira Guerra, algo impensável até para ele, mas será facilmente algo pior do que Bush.
Com ele, o mundo ficará bem pior. E ainda tem gente, no Brasil, que aposta suas fichas estratégicas na aliança com os EUA. Devem ter fumado gás tóxico estragado.