No próximo dia 29, numa escala em sua viagem com destino à reunião do G20 em Buenos Aires, o conselheiro para segurança nacional de Donald Trump, John Bolton, aportará no Rio de Janeiro para ter uma conversa com Bolsonaro.
A armada Bolsoleone, já abanando alvoroçados rabos, vê essa reunião com um “sub” como uma demonstração de grande prestígio mundial.
Evidentemente, não é. Em primeiro lugar, porque trata-se de uma reunião com alguém de segundo escalão. Em segundo, porque Bolton não vem ao Brasil especificamente para ver Bolsonaro. Ele apenas aproveitou sua viagem a Buenos Aires para fazer uma escala no Rio e conversar com o capitão. Em terceiro lugar, porque Bolton é figura extremamente controversa.
Com efeito, embora tenha influência junto a Trump, o “falcão” Bolton não goza de prestígio algum na comunidade diplomática internacional.
Um dos principais propugnadores do destrutivo unilateralismo norte-americano, Bolton sempre viu os organismos internacionais, espacialmente os vinculados à ONU, com profundo desprezo. O mesmo desprezo que agora aflora em nosso chanceler pré-iluminista.
Bolton foi, aliás, o principal responsável da saída dos EUA do Tribunal Penal Internacional. Tendo alcançado esse objetivo, Bolton afirmou que a saída dos EUA do TPI tinha sido o “momento mais feliz” de sua carreira.
Além disso, ele sempre se destacou por utilizar métodos brutais e desonestos para atingir seus objetivos.
Em 2002, por exemplo, Bolton, sempre obcecado por Cuba, tentou emplacar a tese de que aquele país estava exportando armas biológicas para regimes terroristas. Entretanto, como os analistas para armas biológicas do Departamento de Estado não corroboraram com a tese tresloucada de Bolton, ele tentou derrubar o chefe desses profissionais. Mais tarde, em audiência no Senado, Bolton mentiu sob juramento dizendo que não havia tentado destituir o analista–chefe. Porém, sete profissionais da área o desmentiram.
Mas o que Bolton não conseguiu com Cuba e as armas biológicas ele conseguiu com o Iraque e as armas químicas.
Com efeito, Bolton foi o grande articulador da destituição do grande embaixador brasileiro José Maurício Bustani da direção da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ).
Bustani, um diplomata brilhante, havia sido eleito o primeiro Diretor-Geral da OPAQ, em 13 de maio de 1997, e reeleito para um segundo mandato de quatro anos, em maio de 2001. Em ambos os casos, seu nome tinha sido escolhido por decisão unânime da Conferência dos Estados-Partes da organização.
Durante a competente gestão de Bustani, o número das ratificações à Convenção aumentou 67%. Ademais, a OPAQ conseguiu, nesse período, realizar mais de 1.100 inspeções em todo o mundo e reduzir o estoque de armas químicas em 1/6. Sua gestão foi tão boa que até Colin Powell elogiou publicamente seu trabalho.
No entanto, Bustani cometeu um pecado mortal. Ele levou tão a sério seu trabalho que conseguiu atrair o Iraque para a OPAQ e, com isso, submeter aquele país às rigorosas inspeções daquela organização.
Acontece que, na época (2002), os EUA já estavam planejando a invasão do Iraque, usando o pretexto, cínico e mentiroso, de que aquele país dispunha de armas destruição em massa, principalmente armas químicas. Ora, a iniciativa de Bustani jogaria por terra esse pretexto hipócrita, pois as inspeções da OPAQ demonstrariam que o Iraque não dispunha mais dessas armas.
Bolton, na época Subsecretário para Desarmamento do Departamento de Estado, se encarregou pessoalmente de perseguir e destituir Bustani. Ele viajou à Haia, sede da organização, para articular uma reunião de seu Conselho Executivo, na qual foi apresentada uma moção de desconfiança contra Bustani por fantasiosas e caluniosas “irregularidades financeiras”. A moção foi rejeitada. Contudo, não satisfeito, Bolton conseguiu convocar uma irregular “reunião especial” da Conferência da organização, especificamente para destituir Bustani como Diretor-Geral da OPAQ.
Usando de todos os meios de pressão disponíveis, inclusive de ameaças, Bolton, dessa vez, conseguiu seu objetivo. Com 48 votos a favor de sua demissão, sete contrários e 43 abstenções, Bustani foi afastado.
A maioria dos latino-americanos se absteve na votação vergonhosa. Por quê?
Porque o Brasil não defendeu seu embaixador, como deveria e poderia. Não fez as articulações que poderiam ter salvo Bustani. Pressionado pelos EUA, o governo FHC fez questão de anunciar, aos seus pares, que a OPAQ não era “uma prioridade para o Brasil”.
Assim, o governo da época abandonou seu embaixador à própria sorte. Ante a pressão dos EUA e a posição de Pôncio Pilatos do governo brasileiro, muitos países latino-americanos e africanos, aliados naturais do Brasil, preferiram se abster, na votação da vergonha.
A oposição brasileira tentou, por uma iniciativa capitaneada pelo então deputado Paulo Delgado (PT/MG), amigo de Bustani, extrair algum apoio do Congresso brasileiro para nosso embaixador, já que o Executivo se negava a apoiá-lo de forma efetiva.
Paulo Delgado me mostrou alguns e-mails de Bustani, nos quais ele se queixava de ter sido abandonado e descrevia as manobras sujas, capitaneadas por Bolton, para manchar a sua imagem e destituí-lo do cargo. Era algo de embrulhar o estômago.
Lembro-me que redigi uma moção de apoio a Bustani que o deputado Paulo Delgado apresentou no Plenário da Câmara. Em vão. A base governista se encarregou de enterrá-la.
Esse foi um dos episódios mais tristes e vergonhosos da história da diplomacia brasileira. Uma humilhação difícil de esquecer.
Observe-se que, em julho de 2003, o Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho (TAOIT) condenou a demissão de Bustani como ilegal, pois ela fora totalmente irregular e havia contrariado “a independência dos servidores públicos internacionais”.
Mas Bolton é não apenas agressor do Brasil por ter liderado a demissão ilegal de Bustani. Ele é, sobretudo, um inimigo do Brasil soberano, pois deseja que o nosso país secunde acriticamente a defesa do que ele julga serem os interesses norte-americanos no subcontinente. É também um inimigo do multilateralismo e da construção de uma ordem mundial simétrica e pacífica, algo que beneficiaria muito um país como o nosso.
O sentido da próxima conversa com Bolsonaro é exatamente esse. Ele vem “passar as instruções” para que o Brasil participe ativamente de um jurássico enfrentamento a Cuba e Venezuela. Também instruirá o governo eleito a se afastar da China, nosso maior parceiro comercial, e se alinhar de forma subordinada aos EUA, no grande jogo de poder mundial.
Objetivamente, nada disso interessa, de fato, ao Brasil. Trata-se de uma agenda geopolítica importada, que prejudicará os autênticos interesses nacionais. Se conseguir êxito, Bolton poderá transformar a América do Sul numa região conflagrada, tal qual o Oriente Médio. E, muito provavelmente, acabaria com a soberania do Brasil, já muito fragilizada pelo golpe.
Bolton, um “falcão” delirante, controverso na comunidade internacional e em seu próprio país, assim como o presidente a quem serve, sabe que a armada Bolsoleone, primitiva como é, poderá ser útil aos seus designíos políticos e ideológicos.
Acima de tudo, Bolton e Trump sabem que, com o presidente pré-redemocratização e com um chanceler pré-iluminista, a hora para inserir integralmente o Brasil na órbita geoestratégica dos “falcões” dos EUA é agora.
Em 2002, no episódio de Bustani, o governo FHC fez papel de Pôncio Pilatos. Será que agora o governo eleito estaria disposto a emular as atitudes de alguém como Joaquim Silvério dos Reis?
No momento em que antigos agressores do Brasil são tão valorizados, tudo parece possível.