28 de abril ficou marcado como um dia de vitória, uma greve geral contra as reformas do governo ilegítimo de Michel Temer. Os atos na cidade do Rio de Janeiro foram, contudo, manchados e marcados pela truculência policial. Imagens – por fotografias ou filmagens – dão mostras da ação completamente despropositada do braço armado do Estado, agredindo manifestantes no intuito de dispersar uma manifestação cívica, pacífica e reivindicatória.
Sintomaticamente, naquela mesma sexta-feira o Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão vinculado à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, divulgou os dados das incidências criminais e administrativas de segurança do Estado referentes aos Registros de Ocorrência (RO) lavrados nas delegacias de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro durante o mês de março de 2017.
A rubrica “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” é a tradução para “autos de resistência”, pessoas mortas por policiais em serviço. O dado de 120 mortes significa praticamente o dobro em relação às 61 mortes em março de 2016. Mais precisamente 96,7%.
Dias 27 e 28, em menos de 24 horas, dois jovens foram mortos por policiais em serviço, em pontos diferentes da cidade do Rio de Janeiro: Brendo, mototaxista de 21 anos, era morador do Jacarezinho, e Felipe, de 16 anos, menino que cursava o ensino médio e sonhava ser militar, morava no complexo do Alemão. Histórias que se repetem, testemunhas que afirmam que eles estavam apenas no lugar errado na hora errada e a narrativa policial de que estavam armados e “resistiram”. Enredo de uma história que não termina, não se altera.
Dados do último Mapa da Violência revelam que, no Estado do Rio, 2.002 jovens entre 15 e 29 anos foram assassinados em 2014 — no mesmo período, houve cerca de 30 mil mortes na mesma faixa etária em todo o Brasil. A média, uma das mais altas do país, tem se mantido ao longo dos anos. E a letalidade policial é apontada como uma das grandes responsáveis pela estatística aterradora. O 10º Anuário de Segurança Pública aponta que 3.345 pessoas foram mortas pela polícia no Brasil no ano de 2015, o que corresponde a 9,1 mortes por dia.[1]
Há, no Congresso Nacional, basicamente dois projetos tramitando que procuram acabar com os chamados “autos de resistência”. Na Câmara dos Deputados, o PL nº 4471/12 já teve vários debates e audiências públicas e está, desde o ano de 2014, pronto para a pauta no plenário daquela Casa, sem que haja interesse dos dirigentes em pautá-lo.
No Senado, com texto idêntico ao da Câmara, o PLS 239/2016 foi apresentado pela Comissão Parlamentar de Inquérito que, durante o ano de 2015, investigou o assassinado de jovens, presidida pela senadora Lídice da Mata (PSB/BA) e relatada pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ). Os projetos objetivam a alteração do Código de Processo Penal (artigos 161, 162, 164, 165, 169 e 292) para garantir que todos os homicídios cometidos no país, inclusive aqueles praticados por agentes da segurança pública no exercício de sua função, sejam registrados e investigados.
Os chamados “autos de resistência” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” na engenhosa descrição do órgão de segurança carioca, tido como mecanismo legal que autoriza os agentes públicos e seus auxiliares a utilizarem os meios necessários para atuar contra pessoas que resistam à prisão em flagrante ou determinada por ordem judicial é, na verdade, uma distorção da prática cotidiana dos órgãos investigativos, que possibilita a classificação e o registro das mortes provocadas pelo uso da força policial, tanto no boletim de ocorrência quanto no inquérito policial, como “resistência” e não como homicídio, caso seja essa a versão dada pelos agentes envolvidos. Dessa forma, o homicídio ocorrido não é encaminhado ao órgão de polícia competente e não é devidamente noticiado ao Judiciário. É abarcado pela excludente de ilicitude, que lhe retira o caráter antijurídico do fato. Logo, não há investigação. Desse modo, tornou-se forma corriqueira para encobrir homicídios praticados pela Polícia Militar em confrontos em favelas e comunidades carentes. Forjar flagrantes para enquadrá-los como autos de resistência chegou a limites absurdos, com cenas vazadas para as redes sociais de policiais colocando armas nas mãos de meninos já executados.
O professor Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) afirma que somente 3,7% dos autos de resistência viram processos e destes, 90% são arquivados em menos de três anos. [2]
Os projetos substituem os termos “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte” por “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”. Impõem a obrigatoriedade da preservação da cena do crime e da realização de perícia e coleta de provas imediatas. As perícias criminais devem ser feitas garantindo ao perito a possibilidade de elaborar laudos sem a interferência de terceiros. Também é definida a abertura de inquérito para apuração do caso, vetado o transporte de vítimas em confronto com agentes, que devem chamar socorro especializado.
Encarar o necessário fim dos autos de resistência é um debate civilizatório, que inclui pensar o papel das instituições e das políticas públicas no Brasil na área de segurança. O drama da violência não pode somente ser pautado quando é cometida por cidadãos. É preciso pensar na violência que é praticada pelo próprio Estado, e que em regra termina legitimada como resposta ao crime.
É hora de o parlamento encarar esse debate de frente e aprovar o projeto do fim dos autos de resistência. Entendendo que a lei, por si só, não terá o condão de modificar as práticas que levam a tantas vidas tiradas. Para tanto, é necessário que os operadores do direito mudem suas posturas para dar à norma efetividade e alterar os números dessa vergonhosa estatística.
[1] Disponível em: https://documentos.mpsc.mp.br/portal/manager/resourcesDB.aspx?path=2229
[2] Disponível em: http://necvu.tempsite.ws/index.asp?ChvMn=45