Um espectro ronda o Brasil. O governo, o “mercado” e a mídia tradicional não param de vaticinar: “não há dinheiro, estamos quebrados, precisamos fazer reformas”. O mito é útil para justificar a agenda de retirada de direitos levada adiante desde o golpe de 2016 e intensificada pela dupla Guedes/Bolsonaro. Os que propagam o caos não apenas decretam a falência do país, mas tratam de apontar o culpado: o PT, evidentemente.
Nada como os fatos, no entanto. Essa gente não cansa de mentir ao povo brasileiro. De maio de 2016 para cá, a dívida bruta passou de 68% para 79% do PIB, aumento de 11 pontos. Como pode a dívida ter aumentado se eles não param de cortar despesas sociais e investimentos? É que, segundo o Banco Central, os juros e o desempenho do PIB, entre redução e estagnação, explicam parte substantiva do aumento da dívida.
No período 2014-2016, os juros foram responsáveis pelo aumento médio anual de 7 pontos percentuais (p.p.) na dívida pública, enquanto a queda no resultado primário responde por menos de 2 pontos.
Portanto, não são os déficits primários – diferença entre o que o governo arrecada e gasta, excluídos os itens financeiros, como os juros – que explicam o aumento da dívida. Assim, cai por terra o primeiro mito, segundo o qual a “gastança” da era Dilma teria sido responsável pelo endividamento do país.
A queda do resultado primário é explicada pela redução da receita em ritmo superior ao aumento da despesa. Entre 2014 e 2016, a receita líquida real caiu, na média anual, 5,3%, enquanto a despesa subiu apenas 0,37%. Inverte-se a tendência pré-crise, em que as receitas cresciam acima das despesas. Os déficits primários são o reflexo da crise, e não sua causa, desmontando o segundo mito, que associa de maneira imprópria a crise econômica ao excesso de gastos.
Mesmo com a elevação da dívida, é possível modificar o conjunto das regras fiscais para estimular o crescimento e garantir proteção social, especialmente aos mais vulneráveis. E aí precisamos derrubar o terceiro mito. O país não está quebrado. Sua dívida é denominada em reais e as reservas internacionais, herança de Lula e Dilma que o Banco Central já começou a torrar para saciar os especuladores, nos fornecem um colchão de segurança contra crises externas.
O governo dispõe de mais de R$ 1 trilhão na Conta Única do Tesouro Nacional. E por que não podemos utilizar este valor? O principal problema são as regras fiscais – regra de ouro, Lei de Responsabilidade Fiscal e teto de gastos – que impedem o aumento da despesa pública. Cai assim o terceiro mito: não faltam recursos, mas regras fiscais capazes de estimular a economia em tempos de estagnação da atividade.
O teto de gastos implica que, mesmo havendo aumento da arrecadação, a despesa está congelada e, pior, declinará em relação ao PIB. No caso da saúde, o congelamento do mínimo obrigatório, mais uma obra da Emenda Constitucional nº 95, deve retirar R$ 20 bilhões do setor entre 2019 e 2020. O dado revela o regime fiscal em contraposição direta ao interesse popular, pois a saúde é apontada como principal problema do país, segundo recente pesquisa Datafolha.
Diante da política de austeridade, os investimentos não param de cair. No PLOA 2020, não chegam a R$ 20 bilhões, representando menos de 30% dos valores orçamentários previstos em 2014. O Minha Casa Minha Vida também está em queda livre na proposta orçamentária para o ano que vem, com previsão de R$ 2,7 bilhões. Sem investimentos públicos, o país não cresce, a arrecadação é fraca e outra regra fiscal – a da LRF – exige contingenciamentos para fazer frente à meta de resultado primário.
Como as receitas não reagem, a fórmula de sempre desta gente é achatar despesas. Tanto as discricionárias, afetando investimentos e serviços públicos, como as obrigatórias, alterando a Constituição para cortar direitos, especialmente os previdenciários.
Por isso, afirmo: a reforma da previdência é, na verdade, uma reforma fiscal. Ela restringe acesso e reduz o valor dos benefícios dos trabalhadores em até 40%, apenas para que o Estado caiba nas regras fiscais vigentes. A lógica é tão perversa que abrange até a aposentadoria das pessoas com incapacidade permanente, pensionistas e trabalhadores expostos a agentes nocivos à saúde, para citar alguns exemplos.
O resultado é mais arrocho sobre o povo. Diante da insuficiência de demanda, a economia brasileira está mais de 5 pontos abaixo do seu potencial de crescimento.
O consumo não reage, tendo em vista os 12,6 milhões de desempregados e os 28 milhões de subutilizados, segundo a Pnad/ IBGE. O investimento privado é fraco, pois há capacidade ociosa. O investimento público, variável autônoma que poderia impulsionar o crescimento, é fortemente afetado pelas regras fiscais.
As exportações não são um vetor de crescimento, em razão da desaceleração da economia mundial, agravando-se o quadro pelas trapalhadas bolsonaristas na política externa.
A piora do mercado de trabalho – com elevado desemprego e ampliação das ocupações precárias – já produz aumento das desigualdades, que tende a ser agravada pela redução das políticas sociais. Para 2020, o orçamento do Bolsa Família não tem R$ 1 de reajuste, o que implica queda real dos benefícios.
Segundo a FGV, o índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, bateu recorde em 2019. Mesmo assim, não há nenhuma medida de Bolsonaro/Guedes para taxar o andar de cima. Os dados da Receita Federal mostram que os mais ricos chegam a ter 70% de sua renda não tributada no Imposto de Renda, em razão de injustificáveis isenções. Desonerações com forte impacto fiscal, como as do setor de petróleo, seguem intocadas.
Enquanto isso, o governo quer acabar com qualquer obrigação de gastos mínimos em saúde e educação, reduzir o poder de compra do salário mínimo e vender o patrimônio nacional para pagar dívida. Todo esse custo social e econômico para nada. Afinal, como afirmei anteriormente, a dívida não para de crescer, aprisionando o país numa espiral de estagnação e piora dos índices sociais e fiscais.
Derrubados os três mitos – “a gastança da era Dilma”, “a crise causada pelo gasto social” e o “país quebrado” – só nos resta afirmar que a política econômica e fiscal do governo pode ser sintetizada na seguinte fórmula: ela é socialmente cruel, economicamente ineficaz e fiscalmente trágica.
É passada a hora de alterar o regime fiscal do país, criando regras que combinem estímulo ao crescimento econômico, inclusão social e sustentabilidade fiscal. No entanto, a verdadeira restrição não é técnica, mas política, diante de uma elite e de um governo cujo projeto é retirar estruturalmente o povo do orçamento público. Para isso, eles não precisam resolver os problemas fiscais, mas perpetuá-los, de modo a justificar seu real desejo: aprofundar as desigualdades e a exclusão social dos mais vulneráveis.
Artigo publicado originlmente no Jornal GGN.
Gleisi Hoffmann é Presidenta nacional do PT e deputada federal pelo PT do Paraná.