Alessandro Dantas

Uma vertente de sangue abriu-se no corpo quando caiu ao solo sobre as pedras, e uma junção de dor, choro e desespero apertou os olhos e as mãos. Já não via mais nada, nem movia os dedos. Mas a cabeça resistia. Ela insistia em cenas coloridas, em pássaros e seus cantares, em planícies verdejantes do outro lado do mar (…).
Homens, mulheres e crianças, gente negra, sequestrada, tratada como mercadoria, escravizada, torturada, morta, vilipendiada na dignidade, arrancada de sua terra, exilada do seu chão, de suas mais profundas convivências espirituais, de suas famílias, seus lares, seus amores. Qual o significado da vida?
Jamais devemos esquecer o passado, pois ele é fonte de aprendizado para que os horrores e as desumanidades que aconteceram por séculos jamais voltem a se repetir. O próprio passado nos ensina a não repeti-lo, nem subjugá-lo. Cabe a nós, à sociedade e aos governos compreender esse ensinamento.
Mais de um milhão de africanos desembarcaram no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, a partir de 1811, quando foi construído. Foi o maior porto negreiro das Américas. Esse espaço é testemunho de um dos maiores crimes da humanidade. Ali há uma simbologia enorme de resistência e de busca por reparação histórica para o povo negro.
O local também foi um porto distribuidor de pessoas escravizadas para outros estados do Brasil e para a América Latina, tornando-se o maior centro receptor de pessoas escravizadas em todo o mundo. E aqui lembro Eduardo Galeano, que, na obra As veias abertas da América Latina, abordou o tema da dor e da sobrevivência do povo negro escravizado.
Em 2011, vestígios do Cais do Valongo foram descobertos durante obras na região. Em 2017, a Unesco declarou-o Patrimônio da Humanidade. Ele é a presença viva do sangue jorrado, refletido na força e na cultura da nossa brasilidade.
O presidente Lula da Silva sancionou a Lei nº 15.203/2025, reconhecendo o Cais do Valongo como patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro. Essa norma tem origem no Projeto de Lei nº 2.000/2021, de minha autoria, construído com ampla participação do movimento negro.
A lei estabelece diretrizes para a proteção especial do Cais, em decorrência do título de Patrimônio Mundial da Humanidade, e prioriza ações de preservação da memória e de promoção da igualdade racial como forma de reparação à população afrodescendente.
Conforme a lei, o Iphan deverá realizar consultas públicas com entidades de defesa dos direitos da população negra para execução de projetos no Cais do Valongo. Também deverá coordenar com o município do Rio de Janeiro as ações de proteção do território e orientar iniciativas de conservação da zona adjacente. Além disso, deverá cumprir as diretrizes do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco.
Outra inovação é a autorização para que o Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) priorize projetos de preservação da memória e de promoção da igualdade racial como forma de reparação à população afrodescendente em razão da escravização.
O reconhecimento é um passo fundamental para resguardar a memória da população negra e fortalecer políticas de reparação histórica. O Cais do Valongo equivale a um local sagrado, pelo respeito às vítimas que por ali transitaram e pereceram em razão do cruel processo de escravização africana em escala mercantil.
Esse reconhecimento também reafirma compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O Estado brasileiro tem de ser protagonista em processos de justiça global e de transição para a reparação histórica e cultural à população negra.
O Brasil ainda tem muito a caminhar em busca de justiça social. Já aprovamos o Estatuto da Igualdade Racial, que recentemente completou 20 anos — lei essa originária de projeto de minha autoria. Tive o privilégio de relatar a revalidação da lei da política de cotas nas universidades e de ser o autor do projeto que originou a lei de cotas no serviço público.
É fundamental, nestes tempos em que a juventude negra continua sendo a maior vítima de abordagens policiais mal planejadas, truculentas e desumanas, que juntemos forças para aprovar o Projeto de Lei 5.231/2020, que propõe novas diretrizes para as abordagens policiais, respeitando a vida e a dignidade humana. Essa proposta já foi aprovada por unanimidade no Senado e agora aguarda deliberação na Câmara.