1. No Brasil, o termo “pacote”, quando referido a decisões políticas e administrativas, tem uma conotação fortemente negativa. Mas não há como negar que, no que se refere ao “Bali Package” (Pacote de Bali), o conjunto de decisões da OMC que emergiu da última reunião ministerial de Bali, o resultado foi positivo. Positivo para a OMC, positivo para o comércio mundial e positivo para os interesses brasileiros.
2. Não foi, evidentemente, um avanço substancial. A Rodada Doha ainda está muito longe de ser concluída com sucesso. Há temas e pendências que demandarão um grande esforço negociador, no futuro próximo.
3. Na realidade, no Pacote de Bali há apenas um acordo concluído com sucesso, o denominado “Acordo sobre Facilitação do Comércio”. Tal acordo não incide sobre tarifas ou quotas de produtos. Ele se limita a ditar diretrizes sobre as burocracias que envolvem as atividades de importação e exortação, particularmente às relativas aos despachos aduaneiros.
4. Pode parecer pouco, mas não é. Essas burocracias podem ser, em alguns casos, tão morosas e caras, que acabam se constituindo em barreiras quase intransponíveis ao comércio. Conforme avaliações da própria OMC, os custos dessa burocracia aduaneira podem chegar a cerca de US$ 1 trilhão ao ano. Isso representa ao redor de 5,3% do valor do comércio mundial, que alcançou US$ 18,4 trilhões, em 2012.
5. O acordo alcançado é bastante consistente e completo. Em primeiro lugar, ele obriga as Partes Contratantes a exercer total transparência quanto às leis e normas aduaneiras. Tudo tem de estar publicado e disponível para consultas de modo facilitado, inclusive pela internet. É necessário também disponibilizar mecanismos de consulta para esclarecer quaisquer dúvidas sobre as regras relativas aos despachos aduaneiros.
6. Em segundo lugar, o acordo também contém regras sobre elaboração das normas alfandegárias e sua aplicabilidade. Um ponto importante tange à necessidade de propiciar oportunidade, às partes interessadas, de comentar e manifestar sua opinião sobre quaisquer mudanças nas regras alfandegárias, antes que elas entrem em vigor. Com isso, gera-se um debate democrático sobre tais normas. Outra cláusula relevante diz respeito à possibilidade de questionamento e revisão administrativa e judicial de decisões aduaneiras, conforme as normas de cada país. Um ponto muito importante do acordo tange à disciplina de eventuais enrijecimentos de inspeções. De um modo geral, tais inspeções são exercidas sobre produtos animais e vegetais, sob o argumento de ameaça sanitária e fitossanitária. Muitas vezes, elas são abusivas e feitas sem nenhuma análise concreta dos riscos, constituindo-se, assim, em meras barreiras não-tarifárias. O acordo aprovado determina que quaisquer controles e inspeções adicionais têm de estar baseados em riscos concretos. Ademais, tais controles e inspeções adicionais só podem ser aplicados aos pontos de entrada, nos quais os riscos estariam localizados. Uma vez eliminados os riscos, tais controles e inspeções devem ser suspensos imediatamente.
7. O acordo contém também normas sobre produtos perecíveis, que têm de ter tratamento diferenciado. Uma cláusula importantíssima é a relativa à modicidade das tarifas dos despachos aduaneiros. Conforme o acordo, tais tarifas têm de ser proporcionais aos custos efetivos desses despachos. Com isso, evitam-se tarifas muito elevadas e desproporcionais que funcionam, na prática, como barreiras ao comércio. Há, do mesmo modo, dispositivos específicos que incentivam as Partes Contratantes a permitirem o início do despacho aduaneiro, a partir do momento da celebração contrato de importação. Assim, os produtos poderiam ser despachados antes de sua chegada aos portos, economizando tempo e dinheiro. 2
8. Para o Brasil, esse Acordo sobre Facilitação do Comércio é bastante positivo, pois o nosso país é vítima da burocracia aduaneira como instrumento protecionista. Na relação bilateral com a Argentina, em especial, a burocracia aduaneira provoca graves prejuízos aos exportadores brasileiros. Com efeito, os trâmites kafkianos que os nossos exportadores muitas vezes têm de enfrentar para entrar no mercado do nosso principal parceiro do Mercosul desestimulam e até mesmo inviabilizam, em alguns casos, as trocas comercias. Com efeito, desde que a Argentina adotou esses excessivos procedimentos burocráticos, as nossas exportações para lá caíram de US$ 22,7 bilhões, em 2011, para US$ 18 bilhões, em 2012.
9. Ademais desse Acordo sobre Facilitação do Comércio, o Pacote de Bali, também contém uma declaração ministerial e 14 decisões ministeriais. Tais decisões estão concentradas em três áreas temáticas: programa de trabalho da Rodada Doha, agricultura, inclusive algodão, e tratamento para os países de menor nível de desenvolvimento (LCDs, no acrônimo inglês).
10. Na primeira área temática, deve-se destacar uma decisão que não foi comentada pelos meios de comunicação. Referimo-nos à decisão de manter e aprofundar, no programa de trabalho da Rodada Doha, o tema da transferência de tecnologia e sua relação com o comércio. Esse é um tema caro aos países em desenvolvimento, que foi muito debatido ao longo das décadas de 1960 e 1970, mas que foi progressivamente abandonado nas últimas décadas. A Declaração Ministerial de Doha introduziu o tema nas negociações da OMC, em parte para contrabalançar o atendimento aos interesses das grandes companhias detentoras de tecnologia feito no âmbito do TRIPS. A declaração contida no Pacote de Bali reitera o compromisso com o tratamento do tema na OMC.
11. Na área temática relativa à agricultura, o grande nó górdio das negociações, cabe destacar, em primeiro lugar, a decisão que tange as quotas tarifárias. Muitos países importadores de alimentos permitem a importação de produtos agrícolas com tarifas reduzidas até o cumprimento de uma determinada quota. Uma vez atingida a quota, as tarifas se elevam. Contudo, muitas dessas quotas não são nunca atingidas e o país importador impõe a tarifa plena mesmo assim. Pois bem, a decisão adotada determina que, se uma quota não é atingida em pelo menos 65% ao longo de três anos, o país importador, caso seja demandado pelos exportadores, terá de atingi-la de forma automática. Trata-se, obviamente, de uma boa notícia para o Brasil.
12. Em segundo lugar, cabe comentar a decisão relacionada aos estoques públicos de alimentos para a segurança alimentar. Trata-se de decisão que protege os programas de formação de estoques de alimentos para fins de segurança alimentar nos países em desenvolvimento de eventuais questionamentos na OMC. Evidentemente, tais programas subsidiam a produção de alimentos nesses países, particularmente a produção feita pela chamada agricultura familiar. Pela decisão, tais programas não poderão ser questionados pelo prazo de 4 anos. Neste prazo, serão considerados subsídios “não-acionáveis”, como os que constam da chamada “caixa verde”.
13. A Índia era a principal interessada nessa medida. Nesse país, cerca de 70% da população (800 milhões de pessoas) ainda vivem em áreas rurais e dependem estreitamente da atividade agrícola. A Lei de Segurança Alimentar da Índia é extremamente importante para essa parcela muito expressiva da população. Para os países exportadores de alimentos, especialmente os países exportadores de arroz, essa não é uma boa notícia, mas esse foi o preço pagar para que Bali não redundasse em fracasso.
14. Assim sendo, e analisado o Pacote de Bali em seu cômputo geral, o Brasil poderá obter ganhos comerciais expressivos com as medidas e decisões adotadas. Contudo, o ganho principal do Pacote de Bali não é comercial e econômico, mas sim político.
15. É a primeira vez que a OMC consegue fechar um acordo comercial. Os famosos acordos assinados na Rodada Uruguai foram negociados, na realidade, no âmbito do GATT, foro negociador que antecedeu a OMC, que foi criada na mesma rodada. Ao longo dos 19 anos da sua existência, a OMC nunca havia conseguido fechar qualquer nova negociação. Com isso, a organização estava se constituindo somente numa instância de arbitragem comercial, que resolvia, ou tentava resolver, disputas comerciais entre os Estados Membros.
16. A retomada da OMC como grande foro negociador do comércio mundial é muito importante para o Brasil e os demais países em desenvolvimento. A OMC é um grande foro multilateral que toma decisões por consenso. Em suas votações, os países em desenvolvimento têm o mesmo peso que os países desenvolvidos. Ademais, esse foro permite a articulação dos interesses dos países emergentes, que são mais numerosos que os países desenvolvidos. O Brasil, por exemplo, conseguiu articular os interesses de muitos países em desenvolvimento com a formação do chamado G-20, na Conferência Ministerial de Cancún. Isso mudou a correlação de forças nas negociações comerciais multilaterais, até então dominadas pelos interesses dos países mais desenvolvidos.
17. Ultimamente, vinha se verificando uma tendência de negociar acordos de livre comércio de forma bilateral ou regional. Em geral, essa forma de negociação não é boa para os países em desenvolvimento, pois é usualmente assimétrica. Os países mais avançados acabam incluindo nesses acordos regras mais favoráveis aos seus interesses do que as que poderiam ser obtidas no grande foro multilateral. Na pressa de conseguir vantagens de curto prazo, alguns países em desenvolvimento acabam com elas concordando, comprometendo seu futuro no longo prazo. Mesmo no Brasil, vemos manifestações dessa disposição afobada e temerária por parte até mesmo de setores da indústria, que seriam destruídos, caso celebremos acordos de livre comércio com a União Europeia e os EUA, sem os muitos cuidados necessários.
18. A volta da OMC como foro multilateral privilegiado para a celebração de novos acordos comerciais pode ajudar a conter essa perigosa tendência.
Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança do PT no Senado