A popularização da comunicação digital, sobretudo por meio das redes sociais, que produzem uma troca de informação em tempo real, acelera essa tomada de posição e é potencializadora da repercussão da notícia.
Em regra, no Brasil, um julgamento só é considerado efetivo se condena, não quando produz justiça. Eis porque o acusador é o herói, o julgador severo é justiceiro e os que a ele se opõem são “fantoches” que julgam por motivos outros quaisquer que diferem de produzir “o bem”.
No primeiro momento do julgamento da AP 470, os editoriais saudaram efusivamente a condenação dos réus do “maior escândalo da história” – o que, a toda evidência, nunca foi – em capas com fotos dos acusados vestidos de presidiários de revistas em quadrinhos. Em seguida estimularam toda sorte de “luto” de alguns artistas que se dispunham a pegar carona no circo que se armou, em uma “paspalhice” sem par, posando de preto nas redes sociais em virtude de o tribunal aceitar os embargos infringentes.
A maioria do tribunal, então, incluindo seu decano Celso de Mello – um juiz em regra avesso a qualquer manifestação de cunho político – e, sobretudo, os novos na Corte, Teori Zavascki e Luiz Roberto Barroso foram acusados de premiar a impunidade e a morosidade judicial. Os meios de comunicação não acharam significante explicar ao leitor que o recurso possui clara previsão no artigo 333, do Regimento Interno do STF e que o duplo grau de jurisdição é garantido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição o Brasil assumiu em 1998. Pouco importa, porque a palavra da vez era “protelatório”. E como todo simplismo é absoluto e se basta, qualquer argumento era acusado de partidário.
Reação idêntica se repetiu agora no julgamento do mérito dos embargos, quando, por maioria, o tribunal fez a revisão da condenação de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro de alguns dos réus.
A evidente falta de imparcialidade do ministro Joaquim Barbosa fora tratada como mero esperneio de advogados e petistas. Barbosa presidiu a fase de investigação e o processo, procedimento que, além de altamente questionável dentro de nosso direito pátrio, por ficar subjetivamente comprometido com o resultado do processo, descumpre o artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que já levou a Corte Interamericana a anular processos em Estados-partes, como o casoLas Palmeras contra a Colômbia em 2001. Tampouco a obviedade de serem definidas penas fora dos padrões da jurisprudência do STF e dos demais tribunais do país mereceram ponderação. Além disso, Barbosa distribuiu xingamentos a jornalistas, bateu-boca com seus colegas, tentou mudar regras de desempate, encerrou um julgamento importante quando só faltava um julgador votar, como forma de pressioná-lo. Agiu destemperadamente todo o tempo, chegando a acusar um colega de votar “politicamente”.
Não menos ativo e de outro modo, o ministro Gilmar Mendes questionou, em manchetes nacionais, as doações para pagamento das multas de condenados, lançando dúvidas sobre sua licitude sem qualquer elemento de prova e criando a estapafúrdia tese de “agressão ao princípio da individualização da pena”. Nesse diapasão, trocou cartas públicas com o senador petista Eduardo Suplicy, onde o aconselhava a organizar uma “vaquinha” para pagar o que foi roubado do erário no esquema do mensalão”. Sintomático? Não apenas. Trata-se de um juiz na Suprema Corte do país debatendo publicamente com políticos termos do processo do qual participa como julgador. Talvez a mídia, com um mínimo de responsabilidade, pudesse ter informado os leitores do quanto isso pode ser perigoso para a imparcialidade nos julgamentos. Não lhes pareceu digno de nota, creio.
O ministro Marco Aurélio, seguindo seu hábito de publicizar seu pensamento nos jornais, também fez grandes contribuições, na última delas “denunciava” as regalias dos condenados e contribuiu para que a Vara de Execuções Penais do Distrito Federal suspendesse cautelarmente o direito ao trabalho do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, supostamente em virtude de uma feijoada no presídio, fatos até agora não esclarecidos, no entanto bastantes para suspender direitos de um condenado, em franca exceção da prática judiciária.
O processo de julgamento da AP 470 foi transformado em um espetáculo de mídia, transmitido ao vivo, com direito a programa exclusivo na Globo News, onde juízes preocupavam-se com a “opinião pública” e emitiam, senão em seus votos, mas em entrevistas – cada dia mais comuns –, palpites sobre aspectos relevantes sobre os quais depois deveriam emitir julgamento. Enquadrou-se nas formas não institucionalizadas de executar penas sem processo, com acusados e réus expostos à execração pública.
Perderam-se os julgadores em meio a um labirinto quando entre a opção da culpabilidade, consolidada por inúmeros precedentes de decisões judiciais, seguiram o corredor da chamada “teoria do domínio do fato”, em que basta o conhecimento do agente ou o eventual conhecimento assumindo o risco para a participação no delito.
Não se trata aqui de traçar uma versão reducionista dos fatos que levaram à instauração do processo, tampouco de menosprezar o papel do Supremo Tribunal Federal, mas uma tentativa de compreender a natureza e as consequências desse julgamento e suas prováveis consequências. Se, de um lado, há óbvia importância no sentido de contribuir para a percepção de que políticos e grandes empresários também podem ser julgados e condenados, o que, espera-se, não se restrinja a um caso único; de outro, identifica-se que a interferência da opinião pública personificada no corpo midiático teve influência danosa ao longo de todo o processo, fazendo com que alguns dos juízes assumissem uma postura irracional, tendenciosa ou receosa, sem elementos de prova e modificando, de fato, a jurisprudência do país em aspectos muito relevantes, que dizem com as garantias dos acusados em matéria penal e desproporção das penas.
Só o futuro dirá se nossa Suprema Corte saberá lidar com as idiossincrasias do resultado desse julgamento e, quiçá futuros juízes tenham que fazer um reparo naquilo que, a título de ser uma grande decisão judicial tenha sido, de fato, o resultado da prática de um populismo judicial, inconciliável com a Constituição Federal que deveriam tutelar seus autores.
Aliás, a Carta Magna é o instrumento que pode fazer o reconhecimento dos entroncamentos do labirinto para que, tal como Teseu, possamos ter o fio condutor para o caminho de volta.
Tânia Maria Oliveira é advogada e assessora técnica da Liderança do PT no Senado