Adotando novos mecanismos de prevenção e repressão à criminalidade organizada, a legislação processual penal brasileira aderiu à figura da delação premiada, cuja criação tem como finalidade principal a facilitação das investigações do fato delitivo em toda a sua complexidade. Embora apareça em vários diplomas, a delação premiada é efetivamente delineada na Lei nº 12.850/2013, chamada de Lei das Organizações Criminosas.
Do ponto de vista teórico, o legislador brasileiro pretendeu se utilizar da delação como meio de prova para qualquer espécie de crime, fato que suscita debates no meio jurídico e coloca em questão toda a essência do Estado Democrático de Direito. Isso porque o Estado transfere o ônus de apurar o cometimento de crimes para a palavra de quem os comete, oferecendo como contrapartida uma benesse punitiva. Ocorre que, no momento em que foi dado ao Estado o monopólio da persecutio criminis urge que se municie para obter êxito em tal tarefa. Seu fracasso não pode, em qualquer hipótese e sob qualquer pretexto, ser compensado com barganhas para a suposta elucidação de crimes.
Com a deflagração da chamada “Operação Lava Jato” da Polícia Federal, em março de 2014, os acordos de delação vieram para o centro dos debates. Desde então, o processo penal desse caso parece ter se transmutado em verdadeiro jogo de cartas, em que não se sabe onde termina a busca pela verdade, pela responsabilidade da prática dos delitos e definição de condutas, e onde residem os “blefes” dos delatores. O frenesi acusatório transformou a investigação em verdadeiro espetáculo de mídia, com vazamentos seletivos de depoimentos sigilosos, sem que se saiba de sua veracidade, limites ou recortes.
O sigilo dos acordos de delação transformou-se em uma armadilha, em que pessoas são “notificadas” de sua suposta citação em depoimento pela imprensa, não podendo defender-se diante do desconhecimento do teor das “acusações”. Por outro lado, a acusados oficialmente é negado acesso aos conteúdos de que é detentora a acusação, em violação evidente ao direito de ampla defesa e ao contraditório.
Do ponto de vista processual penal sabe-se que a delação premiada não tem valor de prova isoladamente. É um caminho investigativo que requer elementos objetivos. O afirmado pelo delator pode, ou não, ser algo real ou verdadeiro. É indispensável que ele indique onde estão as provas, sem o que a mera declaração dele não tem validade jurídica. A questão, tal como se mostra no caso da Operação Lava Jato, está em decifrar o que pode ser versão, e como tratar o que não se conclui como veracidade. Quando se concretizam condenações com base na declaração de acusados, há que se refletir sobre os desvios decorrentes da má utilização desse instituto.
O caso do empresário José Aldemário Pinheiro Filho, conhecido como Léo Pinheiro, é um capítulo à parte na novela das delações premiadas da operação Lava Jato. Os fatos mostram que a hipótese ultrapassa todas as barreiras no quesito de uso indevido do instituto, ou pior, na desconsideração de seus requisitos para validade processual.
Com efeito, Léo Pinheiro prestou depoimento ao juiz Sérgio Moro nos autos da Ação Penal 5046512-94.2016.404.7000/PR no dia 20 de abril de 2017, na condição de corréu, sem qualquer obrigação de dizer a verdade, e em meio a um debate acerca do acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal.
A defesa do ex-presidente Lula oficiou, então, ao juiz Sérgio Moro para que o MPF esclarecesse o status das negociações de acordos de delação com José Adelmário Pinheiro Filho e Agenor Franklin Magalhães Medeiros, bem assim os benefícios oferecidos a ambos. Ao indeferir o pleito da defesa, o magistrado afirmou que a questão já havia sido objeto das audiências de interrogatório, nas quais os acusados declararam que estariam tentando celebrar um acordo de delação premiada, mas que nada teria sido ultimado e nenhuma oferta de benefício concreto teria já sido realizada, negando ao acusado Luiz Inácio Lula da Silva o acesso a elementos de prova já documentados.
A Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal possui redação de clareza inquestionável sobre o direito de defesa: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Mostra-se evidente que os corréus prestaram depoimento para que os órgãos de investigação verificassem se a indicação de fatos potencialmente imputáveis ao expresidente Lula constituiriam condição para destravar os acordos de delação, cuja negociação vinha sendo operada há vários meses. Desse modo, o testemunho de Léo Pinheiro era a condicionante para ajustar o pacto, donde facilmente se conclui que somente as “informações” que prestasse sobre o ex-presidente Lula o qualificariam a receber os benefícios do acordo. O paradoxo é que, não estando compromissado, depondo na condição de réu, não lhe poderia ser cobrado qualquer compromisso de falar a verdade. Ao mentir, buscou legitimar-se para conseguir as benesses que o trato com o Ministério Público lhe traria sem que, com isso, restasse comprometida sua autodefesa.
Malgrado esse fato, a defesa do empresário solicitou, na oportunidade da apresentação de memoriais472 na ação em que responde junto com o ex-presidente Lula o reconhecimento da “colaboração” e a aplicação dos dispositivos penais pertinentes aos benefícios legais previstos em seu favor, pedindo a redução da pena em 2/3 e a modulação para regime mais favorável.
Espantosamente, em suas já famosas alegações finais – em que evoca a obviedade elementar de Sherlock Holmes na “lógica abdutiva” da teoria explanacionista – o Ministério Público Federal concorda que houve colaboração do réu Léo Pinheiro, requerendo redução da pena pela metade por ter ele “prestado colaboração relevante para o esclarecimento dos fatos, mesmo sem acordo formal de colaboração.”
Por seu turno, nas 218 páginas da sentença em que condena o ex-presidente Lula a 9 anos e meio de prisão, o juiz Sérgio Moro, após fazer toda sorte de considerações que impediriam, a toda evidência, a valoração do depoimento de Léo Pinheiro como delação premiada, assevera, contudo:
“Ainda que tardia e sem o acordo de colaboração, é forçoso reconhecer que o condenado José Adelmário Pinheiro Filho contribuiu, nesta ação penal, para o esclarecimento da verdade, prestando depoimento e fornecendo documentos. (…)
“Sendo seu depoimento consistente com o restante do quadro probatório, especialmente com as provas documentais produzidas e tendo ele, o depoimento, relevância probatória para o julgamento, justifica-se a concessão a ele de benefícios legais” (pag. 209/210 da sentença)
Afirma, ainda, que adotou, para a concessão dos benefícios, os parâmetros do acordo de delação de Marcelo Bahia Odebrecht, Presidente da Odebrecht, e que praticou crimes em condições materiais e pessoais similares a José Adelmário Pinheiro Filho.
São de diversas naturezas os erros e distorções existentes no processo de valoração de “provas” obtidas com o depoimento de Léo Pinheiro.
Em primeiro lugar, juiz e Ministério Público Federal fizeram, em sede de alegações finais e sentença, explicitamente, reconhecimento de delação premiada sem que tenha havido um acordo celebrado com o próprio MPF. E pactuaram a concessão de benefícios em favor do réu Léo Pinheiro, por ter ele afirmado que o imóvel Triplex, na praia do Gaurujá, pertence ao ex-presidente Lula. Criaram, desse modo, a figura do “delator informal”, inexistente no ordenamento jurídico pátrio, fazendo uma espécie de trampolim jurídico, ao saltar abertamente o que dispõe o art. 6º, da Lei nº 12.850/2013, sobre a forma das delações premiadas, inescusável para lhes conferir validade.
Seguindo seu intento, na página 211 da sentença, o juiz consegue se esmerar nas inovações principiológicas. Ao repetir o óbvio que a concessão do benefício ao réu está condicionada à confirmação do tribunal de apelação, trata da “continuidade da colaboração” e na obrigação do réu de falar a verdade.
“A concessão do benefício fica ainda condicionada à continuidade da colaboração, apenas com a verdade dos fatos em todos os outros casos criminais em que o condenado for chamado a depor.
Caso constatado, supervenientemente, falta de colaboração ou que o condenado tenha faltado com a verdade, o benefício deverá ser cassado.” (grifos meus)
A confusão propositada que faz a sentença, assumindo como delação premiada o depoimento de um corréu que, efetivamente, não firmou esse compromisso e – pasme – exigindo que se comprometa com a verdade durante interrogatórios vindouros, como uma ameaça, expõe o documento ao patamar do absurdo jurídico, logrando desvirtuar os princípios mais basilares do direito. Se discordância houver de que interrogatórios são procedimentos doutrinária e jurisprudencialmente considerados meios de defesa, ninguém ignora que a todo investigado é assegurado o direito constitucional ao silêncio e o de não produzir provas contra si mesmo.
Já condenado pelo juiz Moro a 16 anos e 4 meses de reclusão em outra ação por corrupção ativa, lavagem de dinheiro e organização criminosa, preso pela primeira vez em novembro de 2014 e posto em prisão domiciliar pelo STF, o empresário Léo Pinheiro prestou vários depoimentos ao longo de quase 3 anos de investigação, sempre negando qualquer envolvimento do ex-presidente Lula no chamado “caso Triplex”. Os acordos de delação premiada foram sucessivamente rejeitados justamente por não mencionarem o ex-presidente. Em setembro de 2016, 15 dias após o MPF desacolher a primeira oferta de tratado de delação, o empresário foi novamente preso pelo juiz Moro e em novembro teve sua pena aumentada em 10 anos.
Finalmente, mais de dois anos após a primeira prisão, vendo sua situação agravar-se a cada dia, Léo Pinheiro prestou, em abril de 2017, o depoimento que Dallagnol e Moro consideram que “colaborou” com a investigação: repetiu a versão já adotada pelo Ministério Público Federal de que Lula é o verdadeiro proprietário do imóvel apartamento Triplex, 164-A, Edifício Salina, Condomínio Solaris, no Guarujá, no litoral paulista, parcialmente reformado, em troca de ter beneficiado indevidamente a empreiteira OAS em três contratos do consórcio CONEST/RNEST, lesivos à Petrobras. Criou o empresário, adicionalmente, diálogos entre ele e o ex-presidente Lula que ninguém mais presenciara, em que teria sido instado a destruir provas.
A inverossimilhança do depoimento prestado pelo empresário Léo Pinheiro, argumentos produzidos de modo inválido, após anos de pressão e dada sua condição de réu preso é latente, sobretudo se contrastada com o depoimento das 73 testemunhas ouvidas em 24 audiências na ação penal e os documentos carreados aos autos. Mereceu, nada obstante, 29 parágrafos na sentença do juiz Sérgio Moro.
Agregada à disposição do órgão denunciante e do juiz de conferi-lhe – a despeito da norma e da burla ao procedimento – o valor de delação premiada, o depoimento de Leó Pinheiro poderia nos conduzir à sedução de utilizar, com maior propriedade, os mesmos critérios da lógica abdutiva adotada por Deltan Dallagnol nas alegações finais na mesma ação penal, e citar o famoso investigador inglês da obra de ficção. Quais as hipóteses fáticas que se apresentam para explicar a evidência? a) o depoimento foi fabricado? b) a versão foi combinada? c) a criação da figura do “delator informal” é bonificação para justificar o enredo do vale tudo para condenar o ex-presidente Lula? d) todas as alternativas estão corretas?
“- Elementar, meu caro Watson!”
Artigo originalmente publicado no livro “Comentários a uma sentença anunciada: o caso Lula”