Sancionada por Jair Bolsonaro (sem partido) em 15 de julho, a lei 14.026/2020 estabeleceu um novo marco regulatório para o saneamento básico do país que facilita a privatização do setor. A partir de agora, empresas públicas não poderão ser contratadas diretamente, e deverão disputar uma licitação com empresas privadas.
Bolsonaro vetou, ainda, o artigo que permitia a possibilidade de extensão dos contratos atuais com as empresas públicas por mais 30 anos. O dispositivo era resultado de uma articulação feita pela oposição e por governadores críticos aos efeitos da privatização de serviços essenciais.
Enquanto o setor privado comemora a aprovação da lei e o veto de Bolsonaro, parlamentares e entidades da sociedade civil alertam que o novo marco trará consequências diretas para a população e não resultará na prometida ampliação do acesso ao saneamento básico.
A critica é baseada em experiências internacionais negativas. Conforme aponta um estudo do Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda, de 2000 a 2019, 312 cidades em 36 países reestatizaram seus serviços de tratamento de água e esgoto. Entre elas, Paris (França), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia).
As quebras ou não renovações dos contratos ocorreram após tarifas muito altas e promessas de universalização não cumpridas, além de problemas com transparência e dificuldade de monitoramento do serviço pelo setor público. Mais de 80% dos casos aconteceram na última década.
Para o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), as empresas privadas precisam garantir o aumento da tarifa para, consequentemente, lucrar mais. Segundo ele, esse comportamento pode gerar um ciclo vicioso em que a população não consegue arcar com o aumento das tarifas, a arrecadação para as obras e ampliação dos serviços ficam comprometidas, afastando ainda mais a universalização.
“O lucro garantido em determinados casos é sinônimo de falta de acesso de um número grande de pessoas à sobrevivência. Porque água é sobrevivência. No momento em que se tem o capital aberto, há o direito, entre aspas, do acionista em obter lucro, o que é considerado como regra”, afirma o parlamentar.
“Se esse é o interesse que deve prevalecer, pode haver um conjunto grande de comunidades que ficarão sem acesso à água justamente porque não é lucrativo trabalhar de maneira efetiva para que aquelas regiões, aquelas comunidades, venham ter acesso à água. Resumindo, é colocar o lucro acima da vida das pessoas”, reprova.
Olhos grandes
A reação do mercado à sanção do PL foi imediata. No dia seguinte à assinatura de Bolsonaro, as ações da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) e Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) registraram alta expressiva.
Para Vicente Andreu, ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), a nova lei corrobora com o processo de desmonte do sistema de água no Brasil. Ele frisa que – ao contrário da meta estabelecida de fornecer água potável a 99% e coleta e tratamento de esgoto a 90% dos lares até 2033 –, a tendência é que a elevação dos preços tornem os serviços inacessíveis às famílias mais pobres.
“Os municípios que não são interessantes para a iniciativa privada não terão investimento, mesmo que receba a concessão. Esse PL é uma declaração de uma sanha privatizante, isso não resta a menor dúvida. Criaram um mecanismo, na minha opinião, desfuncional que desestrutura a prestação de serviços só para atender a lógica da entrada do capital privado”, critica.
Na avaliação de Andreu, quando estivermos próximos de 2033, o prazo para a universalização será postergado. Isso porque, nas cidades com maior arrecadação, já falta pouco para os indicadores serem alcançados, mas a meta do saneamento de qualidade para as cidades pequenas continuará sendo adiada.
Sobre a regulação do setor pela ANA, outra alteração do marco, Andreu analisa que é um fator positivo, já que o órgão tem capacidade para a atuação, e pode jogar luz às relações entre as agências reguladoras e empresas. Ele argumenta, no entanto, que a Agência não pode ser capturada pelo saneamento em detrimento de sua responsabilidade histórica de gerir as águas brasileiras.