O tempo, esse senhor que dita o ritmo da vida, entrou em descompasso no ano de 2020. Todas as relações do mundo passaram a ser determinadas por um ser microscópico e letal.
Foi um ano quase impossível: de viver, respirar, pensar. O andamento das respostas produzidas pelos profissionais de saúde não acompanhou o das dúvidas, perguntas, angústias. Máscaras e álcool em gel passaram a compor o cotidiano de grande parte da população do nosso planeta, assim como, para alguns privilegiados, o teletrabalho, as lives, e o isolamento social.
Boa parte da população não teve esse direito a se proteger. Além disso, aos poucos, o medo foi sendo substituído por uma espécie de “novo normal”, e o anúncio do crescente número de mortos passou a ser uma estatística, deixou de chocar.
O coronavírus evidenciou a percepção de mundo e de política de dirigentes de nações e de pessoas em geral. Não é coincidência que os líderes da relativização do impacto do vírus e da doença que causa, Donald Trump e Jair Bolsonaro, presidem os dois países que encabeçam a lista de números de mortos por covid-19.
O governo Bolsonaro, que começou o ano com a divulgação de um PIB de 1,1%, sendo esculachado nas passarelas do carnaval de Norte a Sul, entrou na era do coronavírus em total negação.
O presidente chamou o vírus de “gripezinha” e “resfriadinho”, desafiou números, brigou com governadores, se indispôs com o Supremo Tribunal Federal (STF), foi para as ruas, apoiou manifestações pelo fechamento das instituições, tentou impor a reabertura do comércio, elegeu a cloroquina como remédio eficaz, se contaminou e se curou, trocou duas vezes de ministro da saúde, optando ao fim por um militar não-médico e, por fim, criou uma rixa contra a vacina, espalhando desconfiança e proferindo suas pílulas de estupidez em frases como: “Se você virar um jacaré é problema seu”.
O Brasil vai encerrando o ano com quase 200 mil mortos pela covid-19. A crise institucional, que se acumula desde 2019, com a posse do novo presidente, se aprofundou. Em certa medida, há uma continuidade do que ocorre no país desde o ano de 2016, em que o comando passou para as mãos das forças políticas neoliberais.
Em outra ponta, ocorreu um acirramento, em que Bolsonaro tem sido um teste à própria democracia brasileira, alimentando um conflito permanente com os “inimigos” imaginários. Com cerca de 56 pedidos de impeachment apresentados na Câmara dos Deputados, e tendo passado por vários embates com o STFl, Jair Bolsonaro começará o terceiro ano de governo tendo que responder sobre o uso das instituições para beneficiar e proteger seus filhos, do “01 ao 04”, todos com denúncias na Justiça.
A operação Lava Jato, por seu turno, terminou o ano enfraquecida, com a briga declarada com o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, mais revelações de ilegalidades divulgadas, a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça e Segurança Pública, e de Deltan Dallagnol da força-tarefa de Curitiba, após ter sofrido uma sanção de censura no Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP.
Os movimentos sociais e a sociedade civil depararam-se com a impossibilidade de ir às ruas protestar. A desmobilização, que já era um sintoma antes da pandemia, decorrente de outros fatores, se agravou fatalmente com a necessidade da quarentena para evitar a propagação do coronavírus.
Nesse contexto, chamou a atenção a evidência da luta antirracista, impulsionada, em princípio, pelo homicídio do estadunidense George Floyd, por um policial na cidade de Minneapolis, e a campanha “Vidas Negras Importam”, que tomou corpo também em nosso país.
Pretender fazer “balanço” de qualquer ano é difícil. Trata-se apenas de um recorte temporal, ciclos de 365 dias, que no caso último foi muito espinhoso. E por tanto que se possa dizer, muito sempre estará ausente. Mas, talvez, o mais importante seja pensar o que esperar do futuro na virada da folhinha do calendário.
Nós, que estamos do lado da história de querer e pelejar por uma sociedade mais igualitária, vivendo na realidade fatídica do “Brasil de Bolsonaro”, sabemos que não é possível enxergar um futuro promissor no curto prazo.
É preciso pisar no presente com cuidado e firmeza, começando por reconhecer a crise em que estamos todos e todas, e as fragilidades de nossa situação.
Compreender que a sociedade vive condições subjetivas e objetivas, dentro de uma lógica que não se orienta pelos princípios que ensejamos sejam vislumbrados, mas pelas suas necessidades. As pessoas querem sobreviver. Sua vulnerabilidade social cotidiana não permite que enxerguem os pilares da democracia como primordiais.
Deixar de perceber isso é, provavelmente, uma das razões pelas quais encontramos grande dificuldade de entender a recalcitrante popularidade de Bolsonaro.
Por que, por exemplo, um valor de R$600 é capaz de tornar significativa parte da população grata a quem paga, independente de todas as asneiras ditas e incapacidade de gestão demonstradas? Porque o povo com fome quer comer feijão. E o feijão não é de direita nem de esquerda, é o que mata a fome.
A desigualdade social, que esbulha direitos básicos da sociedade, é motora do desinteresse sobre elementos importantes da democracia. Os desafios, então, são muitos. E passam por absorver que não se trata de dar marcha a ré e recuperar “os anos em que fomos felizes”.
Pensar em como construir o futuro exigirá sabedoria de perceber que os paradigmas são outros, existem novas ferramentas, novas tecnologias, novas formas de comunicação. Isso apenas em perspectiva superficial.
Os próximos 12 meses serão apenas mais uma etapa dessa tarefa, que não é simples, e assinala enorme complexidade.
Estamos lidando com muita ignorância e estupidez, uma evidente depreciação do debate e desconsideração do interesse público. Pessoas que saúdam a intolerância, desprezam a ciência e brindam a incapacidade de seu “capitão” de ajudar a formular respostas, não estão dispostas a trocar argumentos sobre autoritarismo e participação social inclusiva, por exemplo.
Nessa “guerra”, o que precisamos manter são nossos compromissos e valores muito bem identificados. São eles o farol da luta, a luz que indica o caminho. Não há começo porque não há fim. Mas há sempre o recomeço. É o que chamamos de esperança. E ela se constrói no presente.