O mundo contabiliza hoje mais de 2,2 milhões de mortes provocadas pela pandemia da covid-19. São mais de 100 milhões de casos — e quase 10% desses estão no Brasil. Só perdemos em número de vidas ceifadas para os Estados Unidos: 229 mil mortes aqui contra 456 mil lá. Em terceiro lugar, está a Índia, com 154 mil e, em seguida, o Reino Unido, com 110 mil.
Muitos governos se mostram omissos no combate ao vírus; outros agem de forma contida, para não dizer desacelerada. Mas há, obviamente, aqueles que agem com determinação: logo no início da pandemia, já montavam planos, estratégias e logísticas para quando a vacina estivesse pronta e disponível pelos laboratórios.
O governo brasileiro agiu e continua agindo com descaso: tripudiando do vírus, menosprezando a própria ciência, incentivando o descumprimento das regras de segurança, pecando ao não apresentar um plano audacioso e eficaz de vacinação. É inadmissível que se tenha estabelecido no país uma guerra política sobre o problema.
O sanitarista José Gomes Temporão lembra que o Brasil é um dos únicos países do mundo que pode vacinar milhões de pessoas por dia. “Em 2010 vacinamos 80 milhões de pessoas contra a H1N1 em três meses; em 2009, 40 milhões de adultos jovens contra rubéola e a síndrome da rubéola congênita. O Brasil é um dos únicos países do mundo que consegue, em um único dia, vacinar 10 milhões de crianças contra a poliomielite”.
Levantamento do Lowy Institute de Sydney, na Austrália, aponta a atual gestão pública brasileira como a pior do mundo no combate à covid-19. Foram analisados 98 países, a partir de seis critérios, como casos confirmados, mortes e capacidade de detecção da doença. Num total de 100 pontos possíveis, ficamos com 4,3, uma vergonha. Em primeiro lugar, está a Nova Zelândia com 94,4 pontos.
O Congresso Nacional deferiu algumas providências em 2020 com a aprovação de medidas e de projetos que viraram lei para o conjunto da sociedade, para os profissionais de saúde, para o setor econômico e produtivo, para os trabalhadores, entre outros. Mas a questão é que a segunda onda é uma realidade, está aí, em todo o país, matando pessoas, tirando-as do convívio familiar.
No início de janeiro de 2021, tivemos a notícia da vacinação. Mas, infelizmente, caminhamos a passos lentos rumo a uma ampla cobertura vacinal. Até o dia 4 de fevereiro, foram cerca de 3 milhões de pessoas vacinadas, atingindo 1,4% da população brasileira, que corresponde a 211,8 milhões de pessoas. Foram 14.298 doses a cada milhão de habitantes. Convenhamos: estamos muito atrasados, a morte não espera. E, cada vez mais, a população pede respostas urgentes. É preciso ter iniciativa, agir para salvar vidas.
Há outra realidade que precisa ser encarada: os custos elevados de vacinas produzidas por laboratórios privados, ou protegidas por patentes, tornam quase impossível a países pobres conseguir obtê-las no mercado internacional. Assim, fica evidente que o monopólio de vacinas contra a covid-19 não interessa à humanidade. O monopólio é protegido pelo Acordo Trips (Tratado sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, da sigla em inglês), adotado pelo Conselho-Geral da OMC (Organização Mundial do Comércio), que protege a propriedade industrial.
O nosso país pagou mais do que o dobro do valor pago pelos países da União Europeia pelas 2 milhões de doses da vacina desenvolvida pela AstraZeneca: US$ 5,25 por dose. Países da União Europeia pagaram U$ 2,16. Não podemos ficar reféns das indústrias farmacêuticas. A imunização deve ser para todos. É preciso estabelecer condições para que a vacina seja universalizada.
Apresentei projeto de lei (PL 12/2021) propondo a quebra de patente de vacinas, testes diagnósticos e medicamentos de eficácia comprovada contra a covid-19 durante a pandemia. Essa medida é defendida por governos, parlamentares, cientistas, médicos, especialistas e ativistas no mundo inteiro. A questão deve ser tratada como bem público, como já ocorreu no caso da quebra das patentes dos antivirais contra o HIV (vírus causador da Aids) no Brasil em 2007.
Na justificativa do PL 12/2021, eu aponto que, recentemente, a reitora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Soraya Smaili, defendeu a quebra das patentes das vacinas contra a covid-19 como forma de garantir a soberania e autonomia do Brasil, viabilizando a produção por instituições públicas como o Instituto Butantã e a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), e sem a dependência de fornecedores estrangeiros.
Lembro também, na justificativa do PL 12/2021, que, desde outubro de 2020, a OMC discute a proposta apresentada pela Índia e África do Sul para a suspensão da aplicação do Acordo Trips e o licenciamento compulsório da produção de vacinas, medicamentos e insumos. Mais de 1.200 personalidades e especialistas em saúde pública assinaram carta de apoio à medida, exigindo o compromisso do Brasil com a proposta.
A quebra de patente para combater a pandemia da covid-19, conforme justifico, não implica ignorar o direito às patentes, mas relativizar esse direito, em caráter temporário, em vista do interesse maior do povo brasileiro, viabilizando a produção de vacinas e medicamentos a custos mais baixos e sustentáveis, no contexto da grave crise fiscal que atravessa o país.
As autoridades públicas não podem mais se omitir diante da gravidade da crise, advinda da pandemia e da falta de um projeto nacional de desenvolvimento e crescimento para o Brasil. Há seres humanos morrendo. Da mesma forma, de imediato, é urgente a manutenção do auxílio emergencial para combater a fome e salvar vidas. A pobreza continua a crescer aos olhos do poder público: 12,8% da população brasileira, cerca de 27 milhões de pessoas, sobrevive com R$ 246 por mês, o que equivale a R$ 8,20 ao dia.
Franz Kafka dizia que a solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana. Sendo assim, nestes tempos tão atribulados, de sofrimento, de desencantos, de ranços políticos, perdemos essa noção? Creio que não. Onde houver um sopro de vida, um brilho no olhar, sempre haverá esperança de dias melhores para ciclos evolutivos, juntando a justiça das políticas humanitárias com a beleza constante do amor e suas amorosidades.
Artigo originalmente publicado no Nexo Jornal