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PL da vacina: Sete questões legais que os senadores precisam atentar

Para o enfrentamento da pandemia, é necessária a responsabilidade de todos e não apenas do setor público
PL da vacina: Sete questões legais que os senadores precisam atentar

Foto: Agência Brasil

No último dia 7 de abril, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 948, de 2021 (PL 948/21). Polêmica, a proposição pretende alterar a Lei nº 14.125/2021 que autoriza a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a adquirirem vacinas e a assumirem os riscos referentes à responsabilidade civil, decorrentes de eventos adversos pós-vacinação contra a COVID-19, sendo esse, um dos pleitos da indústria farmacêutica e que impedia a assinatura de alguns contratos e, consequentemente, a aquisição das vacinas.

Importante salientar a necessidade da concessão do registro ou de autorização temporária de uso emergencial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, inclusive com prazos definidos.

Hoje, de acordo com a Lei em vigor, as empresas já podem adquirir vacinas que tenham registro ou autorização temporária de uso emergencial pela Anvisa, desde que doem todas as doses ao Sistema Único de Saúde – SUS, a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações – PNI.

As empresas poderão adquirir e vacinar gratuitamente quem lhes interessasse, apenas quando o grupo prioritário da população brasileira estiver vacinado, pouco mais de 77 milhões de pessoas, conforme estabelecido no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID–19.

O objetivo central do PL nº 948/21 é permitir que as empresas privadas que comprarem vacinas possam usar 50% dessas vacinas imediatamente para imunizar seus empregados, cooperados, associados e outros trabalhadores que lhe prestem serviços, inclusive estagiários, autônomos e empregados de empresas de trabalho temporário ou de prestadoras de serviços a terceiros.

As empresas ficam obrigadas a doarem ao SUS a mesma quantidade de vacinas adquiridas, ou seja, os 50% restantes.

Todavia, importantes questões devem ser levantadas.

A primeira é a de que o projeto, que agora será apreciado pelo Senado Federal, permite que as empresas comprem, inclusive, vacinas que ainda não têm aval da ANVISA, bastando a autorização de qualquer autoridade sanitária estrangeira reconhecida e certificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A regra não será estendida ao SUS.

Se a empresa privada adquirir vacina não autorizada pela ANVISA poderá doar para uso no âmbito do Plano Nacional de Imunização?

Pensamos que não, pois a autorização da ANVISA, ainda que emergencial, é um requisito para aquisição e utilização das vacinas pelo SUS, conforme definido na lei.

Portanto, o dispositivo do referido PL, que exige doação ao SUS, torna-se absolutamente inválido.

Além do mais, do ponto de vista da segurança sanitária teríamos diferença entre as vacinas aplicadas no SUS e as adquiridas pelo setor privado.

É inadmissível, pelos preceitos do SUS, que um grupo populacional tenha segurança sanitária diferente de outro, seria o mesmo que exigir que em hospital público se utilize penicilina com registro na ANVISA e no hospital privado a penicilina seja dispensada do referido registro.

Admitindo-se tal hipótese, há de se perguntar, qual seria a razão de existir dessa Agência reguladora?

A segunda questão, que merece reflexão, trata-se da previsão de revogação do §1º do artigo 2º da Lei nº 14.125/2021, que condiciona a aquisição da vacina pelo Setor Privado à imunização dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19.

Ou seja, se aprovado o PL, os proprietários e trabalhadores das empresas poderão ser vacinados antes do grupo prioritário a ser imunizado no âmbito do Plano Nacional de Vacinação.

A ideia de vacinar os grupos prioritários é fundamental no combate à pandemia, conforme consta no referido Plano:

para preservação do funcionamento dos serviços de saúde, para a proteção dos indivíduos com maior risco de desenvolver formas graves da doença, para proteção dos demais indivíduos vulneráveis aos maiores impactos da pandemia, seguido da preservação do funcionamento dos serviços essenciais.

Caso aprovada a alteração das prioridades definidas por técnicos e especialistas, para que sejam vacinados àqueles que tenham capacidade de adquirir por intermédio de empresas, se caracterizará claramente um desvio de finalidade da norma, se tornará uma Lei “Fura-Fila”.

Exemplificando, um cidadão jovem sem nenhuma comorbidade poderá ser vacinado antes de outro que integre as prioridades definidas pelo Ministério da Saúde e que esteja exposto aos mesmo riscos.

A terceira questão, as vacinas adquiridas pelo setor privado poderão ser aplicadas em qualquer estabelecimento ou serviço de saúde que possua sala para aplicação de injetáveis autorizada pelo serviço de vigilância sanitária local.

O projeto não confere ao Poder Público mecanismos de controle da vacinação pelo setor privado, nem de rastreamento da origem e acompanhamento das aplicações. A imunização é uma estratégia de saúde pública coletiva. E, dessa forma, deve ser tratada.

Quarta, quem assumirá a responsabilidade por possível evento adverso decorrente de vacinas adquiridas pelas empresas, sobretudo, daquelas que não têm autorização da ANVISA?

No caso de vacinas aplicadas no âmbito do Programa Nacional de Imunização, a União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis, por força do art. 1º da Lei nº 14.125/2021.

Pensamos que as empresas devem assumir a mesma responsabilidade. Precisa-se evitar que tratemos diferentemente os indivíduos que recebam as vacinas adquiridas pelo SUS, daqueles que recebam as permitidas por essa proposta.

Em última instância, neste formato, o SUS acabaria por assumir a responsabilidade de danos provocados por uma liberalidade ao setor privado.

Quinta, a vacina não é obrigatória. Como ficará a situação do empregado que não queira ser vacinado, especialmente, no caso de a vacina adquirida pela empresa não ter autorização da ANVISA?

O trabalhador não poderá ser compelido a tomar a vacina. Nem mesmo, esse pode ser um argumento para obrigar o empregado vacinado a voltar ao trabalho presencial, em locais em que as autoridades públicas decretem lockdown.

Será que os empresários estão entendendo que essa é a bala de prata para suas empresas voltarem a funcionar sem restrições em meio à crise sanitária?

Para o enfrentamento da pandemia, é necessária a responsabilidade de todos e não apenas do setor público.

Merece destaque ainda que o projeto de lei não veda que a mesma empresa adquira vacinas autorizadas e não autorizadas pela ANVISA. Abrindo caminho para imunizar determinado grupo de trabalhadores, por exemplo, terceirizados, com as vacinas não autorizadas. E imunizando outro grupo, como gerentes, sócios e administradores com vacinas autorizadas pela ANVISA. Norteada, claro, pela busca de economia diante do alto dispêndio financeiro.

A sexta, a frase “não há almoço grátis”, muito usada por liberais para defender que ninguém dá nada de graça a outrem, se aplica ao presente caso.

Quando vacinarem seus trabalhadores e sócios, as empresas possivelmente vão pleitear que seus estabelecimentos não sigam as medidas restritivas impostas pelos Municípios, Estados e Distrito Federal, ou menos improvável, pela União, ainda que seus clientes, ou a maioria deles, não estejam vacinados.

Será mais um fator de pressão para o não cumprimento das medidas de isolamento social, apontado por especialistas como principal instrumento de contenção da disseminação do vírus diante da baixa imunização por falta de vacinas.

A última questão a ressaltar é a previsão de que, em caso de violação dos dispositivos legais, a empresa fica sujeita a multa equivalente a dez vezes o valor gasto na aquisição das vacinas.

Ora, não é difícil pensar que, em meio a uma pandemia que já ceifou mais de 354 mil vidas só no Brasil, e diante da importância da vacina para sobrevivência nesse momento, esse valor não será suficiente para inibir a burla da lei, especialmente para driblar a fila do plano nacional de imunização.

Superadas as questões legais, há algumas indagações de ordem econômica, internacional e estratégica não menos importantes.

Se não há oferta de vacinas suficientes no mundo para atender a demanda, e que diversos países, inclusive o Brasil, até o momento não receberam as vacinas contratadas, e, ainda, que os grandes produtores mundiais, como os laboratórios chineses, indianos e norte-americanos estão priorizando seus países, quem fornecerá vacinas ao setor privado?

É plausível pensar que o setor privado concorrerá com o setor público na compra de vacinas, especialmente, quando este tentar firmar novos contratos.

Cada vacina comprada pelo setor privado será uma vacina a menos a ser adquirida pelo SUS.

Se houvesse vacinas suficientes, o SUS poderia ter adquirido a quantidade necessária, pois o Congresso Nacional autorizou recursos na ordem de vinte bilhões de reais para essa finalidade.

Não falta dinheiro, falta capacidade de negociação e vacinas disponíveis no mercado.

Até os países mais liberais e com setores econômicos muito fortalecidos não adotaram essa estratégia. Segundo declarações da OMS, em nenhum país do mundo há permissão para a compra de vacinas pelo setor privado.

Sabemos que temos algumas ‘jabuticabas’, com todo respeito a essa especial fruta, em nossa legislação, mas em termos de pandemia, em que vidas vem sendo perdidas, com recordes diários, o Congresso e o Executivo precisam refletir muito sobre a aprovação desse PL e suas consequências.

É urgente uma coordenação nacional efetiva no processo de aquisição e distribuição de vacinas.

Entre tantas virtudes do SUS, o Programa Nacional de Imunização, com estratégia única e centralizada, é sem dúvidas a maior.

Apartheid vacinal, fura-fila, fila dupla e camarote da vacina são alguns dos vários apelidos atribuídos ao PL 948/21.

Notem que nenhum simpático e, mais que isso, todas as previsões descritas acima demonstram a possibilidade de aprofundar as injustiças e o sofrimento do Brasil no enfrentamento da pandemia.

Não há mais chance e tempo para erros.

Leandro Brito Lemos é advogado e assessor parlamentar no Senado Federal.

Silvana Souza da Silva Pereira é doutoranda em Saúde Pública e assessora parlamentar no Senado Federal

 

Artigo originalmente publicado no VioMundo

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