Para além das vidas perdidas, o avanço do armamentismo bolsonarista também representa gastos elevados para o Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2020, foram registradas no país 17,2 mil internações decorrentes de lesões provocadas por arma de fogo, gerando um custo de R$ 37,8 milhões. Valor suficiente para realizar nove milhões de hemogramas completos ou 1,6 milhão de mamografias.
As conclusões são do estudo ‘Custos da violência armada: Estimação e análise dos gastos com vítimas de arma de fogo atendidas na rede hospitalar do SUS’, do Instituto Sou da Paz. Em média, apontam os dados do levantamento, o país perde mais de 40 mil pessoas por ano para as armas de fogo. Elas foram usadas em 78% dos homicídios no país ao longo da década 2010-2019.
“A média mundial é de 40%. Então, aqui se morre muito mais por arma de fogo do que em outros países”, compara a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ribeiro. “A arma de fogo é instrumento reconhecido como fator de risco à violência inclusive pela área da saúde, e resulta em agravos evitáveis que consomem recursos que poderiam ser destinados a outras demandas.”
Em 2020, 57% dos pacientes internados por violência armada no SUS eram jovens (15-29 anos), 91% eram homens e 56% eram pessoas negras. No entanto, como no conjunto de óbitos provocados por arma de fogo a proporção chega a 76%, deduz-se que a participação da população negra nas internações está subestimada, considerando ainda que faltam informação sobre raça/cor em 25% dos registros hospitalares.
O relatório também revela que, além de mais vitimada por armas de fogo, a população negra conta com um sistema de saúde mais deficitário. O custo médio da internação por violência armada é menor entre vítimas negras em comparação às não negras, assim como a disponibilidade de profissionais da saúde é menor nos estados com maior proporção de população negra.
“O estudo identifica a desigualdade racial entre as vítimas de violência armada internadas na rede hospitalar, sinalizando mais uma vez para a urgência de reconhecer e enfrentar o racismo estrutural que tem entre seus efeitos a acentuada vitimização da população negra por violência”, aponta Carolina Ricardo.
Desde 2008, o custo acumulado das internações para tratar lesões por armas soma quase R$ 680 milhões. “No entanto, essa é apenas uma parte do ônus da saúde no atendimento de vítimas de violência armada, já que há custos bancados com recursos próprios dos estados e municípios”, destacam os autores do estudo.
A quantidade de internações registrada em 2020 foi equivalente à de 2010, embora tenha caído 4,5% entre 2019 e 2020. Os custos estão próximos aos de 2008, já corrigidos pelo IPCA, apesar da retração de 5,8% na comparação de 2020 ante 2019.
“Apesar de registrarmos redução das mortes violentas nos anos recentes, seguimos em nível muito alto e não estabilizado porque a queda é conjuntural. Política pública de segurança é longo prazo”, lembra Cristina Neme, coordenadora de projetos da entidade.
Ataque ao Estatuto do Desarmamento
Gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani afirma que a relação entre o aumento de circulação de armas e homicídios é direta. “O período em que mais cresceu o homicídio no Brasil foi quando tivemos uma corrida armamentista na década de 90. O Brasil está vendo algo semelhante com o governo Bolsonaro”, aponta o autor do livro ‘Arma de fogo: Gatilho da violência no Brasil’.
“No final de 2018 tivemos uma queda de homicídios que acabou entrando um pouco em 2019. A flexibilização de armas começou, principalmente, a partir de maio de 2019 e não parou até agora. Mesmo com pandemia e toda essa questão de fechamento de comércio, a gente está vendo cada vez mais a compra de armas e isso já começa a ter um reflexo nos indicadores”, aponta o advogado em entrevista ao Brasil de Fato.
Enquanto cresce o número de armas e de atiradores, cai a apreensão de armamentos. Em 2018, último ano de Michel Temer, foram apreendidas 8.216 armas no país. No primeiro ano de Bolsonaro, em 2019, foram 6.051. Em 2020, 4.084. Os números de 2021 ainda não foram fechados, mas o último balanço da Polícia Federal (PF) registra 2.714 armas apreendidas, mesmo com muito mais armas em circulação.
“A gente está falando de compra de armas para casa, esse é o lugar onde primeiro sofre essa questão da violência, temos visto o aumento do feminicídio em vários estados que, na nossa opinião, não é uma coincidência quando a gente olha esse cruzamento e essa explosão de armas”, ressalta o gerente do Instituto Sou da Paz.
Dados do Atlas da Violência 2021 apontam que, enquanto os homicídios de mulheres nas residências cresceram 10,6% entre 2009 e 2019, assassinatos fora das residências caíram 20,6% no mesmo período, indicando aumento da violência doméstica. O estudo teve como base os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde.
“Causa preocupação as mudanças recentes na legislação de controle de armas, como os mais de 30 decretos e atos normativos presidenciais publicados desde janeiro de 2019. A flexibilização pode agravar o contexto da violência doméstica”, diz o texto do Atlas, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e em parceria com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN).
“Vemos um ataque às conquistas da Lei 10.836/2003 (Estatuto do Desarmamento). São vários decretos e normas que têm ampliado o acesso às armas e o efeito disso só veremos ao longo do tempo”, finaliza Cristina Neme.
Bancada do PT conteve proposta no Senado
Com a retomada dos trabalhos legislativos, o foco da luta contra o armamentismo bolsonarista recai novamente sobre o projeto de lei (PL) 3723/2019, que tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Na última reunião do colegiado em 2021, a bancada do PT na Casa conseguiu adiar a votação do PL após pedido de vista e um longo debate com a base do desgoverno Bolsonaro.
O PL foi aprovado na Câmara em 2019. No Senado, a proposta teve apenas uma audiência pública para o debate. A bancada petista quer o aprofundamento da discussão, além do envio da proposta para a Comissão de Segurança Pública. Só na CCJ, o projeto recebeu 36 emendas.
“Os argumentos do relator, Marcos do Val, que é um especialista no assunto, não convencem da pressa de aprovar esse projeto”, argumentou o líder da bancada do PT, Paulo Rocha (PA), na reunião de 15 de dezembro. “Todas as iniciativas da presidência da República foram no sentido de armar cada vez mais a população, dando um sentimento de que o Estado brasileiro não dá conta de resolver o problema da segurança. Por isso, essa é uma matéria que exigimos um aprofundamento do debate.”
Reunidas na campanha Não Somos Alvo, organizações sociais apontam alguns dos motivos pelos quais o PL não pode ser aprovado. Acaba com a marcação de munições, inclusive de forças de segurança; define caça, tiro desportivo e colecionamento de armas como “direito de todo cidadão”; dificulta a fiscalização de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs); autoriza o porte para caçadores e atiradores.
As entidades lembram que 73% da população brasileira são contrários à flexibilização das regras de porte no país (Ibope, junho de 2019) e que 72% da população discordaram da afirmação de Bolsonaro de que é preciso armar o cidadão (Datafolha, maio de 2020).