Audiência Pública

Milhões passam fome por falta de prioridade de gestões anteriores

Dados mostram que desmonte de políticas públicas levou à redução da segurança alimentar e do acesso a alimentos saudáveis no país
Milhões passam fome por falta de prioridade de gestões anteriores

Foto: Alessandro Dantas

Em 1946, o escritor Josué de Castro já dizia em sua obra Geografia da Fome: “a fome é um projeto político”. A maior prova está em dados do país nos últimos anos: enquanto a segurança alimentar esteve presente em 77,1% dos lares em 2013, esse índice caiu para apenas 41,3% nos últimos dois anos. O tema foi debatido em audiência pública nesta segunda-feira (27) na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado.

Já na abertura do evento, o presidente da Comissão, Paulo Paim (PT-RS), destacou a contradição de o Brasil ser um dos maiores produtores de alimento do mundo, e mesmo assim, dezenas de milhões de pessoas convivem com a insegurança alimentar nos últimos anos.

“Conforme o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, o Brasil tem mais de 33 milhões de pessoas sem ter o que comer no dia a dia. Quase 60% da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave. E o nosso país tem a capacidade de alimentar mais de 1 bilhão de pessoas”, apontou Paim.

A história mostra a diferença na gestão do tema. Enquanto nos governos de direita as políticas de combate à fome não foram prioridade, os progressistas buscaram incluí-las na agenda de governo.

Por isso, mesmo o crescimento econômico no período após o golpe de 1964 não foi suficiente para garantir a distribuição de renda no país. Quadro semelhante ocorreu em recentes gestões de direita, como os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, e dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros mostram bem esse cenário.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE de 2013, durante a gestão Dilma Rousseff, mostra que a segurança alimentar no Brasil era de 77,1%. Esse índice, no entanto, caiu vertiginosamente nos governos seguintes, caindo para apenas 41,3% nos anos de 2021 e 2022, de acordo com outro levantamento que avaliou a insegurança alimentar no país durante a pandemia de Covid-19 no Brasil.

Como explicou Paim, apesar de o Brasil ter saído do Mapa da Fome em 2014, o país voltou nos últimos anos a enfrentar esse grave problema.

“Infelizmente os tempos mudaram, outro governo assumiu e voltamos ao Mapa da Fome. Estamos deixando que as pessoas morram de fome, morram de desnutrição, de doenças. Matamos pelo poder, por ideologia. Sucumbimos às regras da economia e do sistema financeiro”, lamentou o parlamentar.

Falta de planejamento

Apesar dos dados virem de fontes diferentes de estudo, os debatedores na CDH destacaram que o quadro não muda: a falta de planejamento acaba prejudicando os mais pobres. Assim, mesmo a distribuição do Auxílio Emergencial no governo Bolsonaro foi incapaz de garantir comida na mesa pela falta de diálogo entre os governos nacional e estaduais para identificar onde estavam os que mais precisavam de apoio no período.

“Ao longo dos últimos anos, no período da pandemia, houve o entendimento de que bastava transferência de renda direta para as pessoas que se cadastrassem por aplicativo de celular, e muitas vezes houve fraudes. O TCU estima aí a casa de mais de R$50 bilhões que foram destinados para as pessoas que não precisavam receber esse recurso”, apontou o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz Brasília, Eduardo Augusto Fernandes.

“Porque não havia nessa época da pandemia no Brasil esse trabalho afinado, articulado entre os três níveis de governo. É no governo local que, de fato, se consegue localizar as famílias mais vulneráveis”, acrescentou.

Na mesma linha, Henrique Salles, consultor legislativo do Senado, destacou que as famílias vulneráveis são as mais suscetíveis às variações econômicas, tanto nacionais quanto internacionais. “[Essas famílias] tendem a ter um pouco mais de vulnerabilidade no mercado de trabalho. Então, elas são as que mais perdem emprego quando tem crises econômicas, porque estão majoritariamente no mercado informal”, explicou.

Esse trabalho conjunto para identificar e apoiar essas pessoas deve ser conduzido pelo governo federal, com o intuito de garantir o devido apoio a elas, de acordo com a diretora do Departamento de Análise Epidemiológica e Vigilância de Doenças não Transmissíveis do Ministério da Saúde, Maria del Carmen Bisi Molina.

“Precisamos ter essas pesquisas que sejam do governo. Eu acho que nós podemos ter outros estudos, mas o Governo precisa monitorar o combate à fome especialmente no momento em que nós estamos retomando a ideia de que a fome é inconcebível, de que nenhuma pessoa, nenhum ser humano pode estar com fome ou dormir com fome”, afirmou Molina.

Desmonte

O descaso dos últimos dois governos com os mais pobres foi notório a partir do desmonte de programas sociais. Entre eles, o que garantia acesso a medicamentos por preços mais acessíveis (Farmácia Popular), a casa própria com condições mais justas (Minha Casa Minha Vida) até o fim do maior programa de transferência de renda do país (Bolsa Família).

A importância do Bolsa Família, por exemplo, é comprovada não apenas por ter garantido a compra de alimentos pelos mais pobres. Mas, também, pela influência na economia: economistas projetam que o programa dará empurrão no PIB em 2023 e vai tirar três milhões da extrema pobreza – ajudando a garantir um incremento na renda total das famílias de 3,5%.

“Isso reforça a questão das políticas, porque o primeiro ponto que é essencial é considerar que a luta contra fome deve ser prioridade governamental. […] Então, o aumento do salário mínimo, o emprego, a transferência de renda e a própria questão do acesso a alimentos e da produção de alimentos vão ser essenciais para trazer isso”, afirmou o pesquisador Eduardo Augusto Fernandes.

Para ele, é preciso garantir o aumento do poder de compras das famílias como um fator para reduzir a insegurança alimentar e a desnutrição. Tal medida – junto com outras como o crescimento econômico, aumento do salário mínimo e a redução do desemprego – deve ser feita por meio de iniciativas como a transferência de renda e outros programas sociais.

Alimentação de qualidade

Mas apenas o acesso a recursos para comprar alimentos não basta. É preciso, ainda, segundo os debatedores presentes na CDH, haver preocupação com a garantia de acesso à alimentação saudável.

“Vimos no período de 2018 a 2022 que tem aumentado o baixo peso entre crianças de dois a cinco anos. Além disso, o crescimento também da obesidade entre crianças nessa mesma faixa etária nesse período. Cerca de 500 mil crianças estavam obesas, das quais 330 mil apresentaram obesidade grave”, apontou o representante do Centro de Excelência contra a Fome (WFP/Brasil), Oslyallê Akanni Silva Rodrigues.

De acordo com ele, dados de 2019 mostram que 93% das crianças abaixo de cinco anos de idade consomem alimentos ultraprocessados – ricos em gordura e açúcar, que levam à obesidade e outros problemas de saúde.

“Enquanto isso, o oposto tem acontecido: uma redução do consumo de frutas e verduras, que são alimentos que contribuem, na verdade, para a qualidade nutricional desses grupos, dessas crianças”, lamentou.

A mudança do quadro, na opinião de Eduardo Augusto Fernandes, passa pelo trabalho conjunto: “a intersetorialidade é essencial. Nós precisamos ter comida de verdade para a população, menos ultraprocessados. A questão de que o emergencial é necessária, mas a política estruturante vai ser fundamental para trabalhar essa direção no futuro”.

A CDH realizará novas audiências para tratar da fome no Brasil.

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