Após aprovação na Câmara dos Deputados em maio deste ano, o Senado pautou a finalização do processo legislativo de uma proposição altamente polêmica pelo seu potencial de impactos na integridade territorial, cultural, nos direitos, e nas condições de reprodução social das populações indígenas do Brasil. Me refiro ao chamado projeto de Lei do Marco Temporal da Ocupação, pelo qual, em afronta grosseira à Constituição, uma comunidade indígena só poderia reivindicar a demarcação de área com a sua presença física na mesma em 5 de outubro de 1988. O projeto acrescenta outras inovações temerárias. Antes de abordá-las, convém a contextualização política da proposição.
Pelo receio de 2022 vir a se constituir no último ano do “passa-boiada” (graças a Deus, foi), lideranças mais inflexíveis da Bancada Ruralista exerceram pressões políticas para viabilizar, antes da vitória do Lula, um conjunto de medidas consideradas essenciais para o avanço da exploração agropecuária. Organizações da sociedade civil se opuseram e lutaram contra as medidas que definiram como “pacote da destruição”, pelos danos socioambientais a elas associados. Apesar da ofensiva sem tréguas pela aprovação das medidas, muitas delas não prosperaram graças às lutas das organizações sociais; às reações de setores mais prudentes do próprio agronegócio; de parte da mídia; e aos temores de perdas no mercado internacional.
Integram o “pacote”, tentativa de flexibilização na legislação da regularização fundiária, por vezes, para “chancelar” a grilagem; permissividades no registro e uso dos agrotóxicos; desobrigação do licenciamento ambiental para a agricultura; desconstituição e transferência aos grandes proprietários de terras institucionalmente protegidas. Este último ponto inclui o marco temporal. Na verdade, a definição desse marco restritivo para as demarcações de Tis é “apenas” o carro-chefe do projeto. Destaco o poder conferido pela propositura aos interessados na demarcação, de contestarem o processo demarcatório em qualquer fase, sem regras, prazos, ou qualquer outro balizamento para tal. Obviamente esse dispositivo teria efeito paralisante da demarcação das Tis. E ainda a abertura das Tis para a exploração econômica por terceiros. As violações à Constituição são percebidas já na identificação do projeto que supostamente pretende regulamentar o art. 231 da Constituição. Na realidade, o PL simplesmente altera esse dispositivo da Constituição que em nenhum momento prevê qualquer recorte temporal na ocupação física territorial por uma comunidade indígena como condição para a demarcação da terra.
A despeito das controvérsias de mérito, a eventual aprovação do PL poderia ser interpretada como uma provocação ao STF que atualmente conduz processo de deliberação sobre o assunto.
Ainda no plano político, pelos dispositivos que atacam de forma tão ostensiva os direitos dos povos indígenas, o projeto inviabiliza a convergência política mínima necessária para uma legislação da espécie. Parece provável que a insistência no prosseguimento da matéria sem maiores debates que favoreçam a constituição dessa base mínima de consenso político resulte em veto presidencial e na judicialização da eventual legislação.
Claro que por trás da iniciativa desses segmentos Bolsonaro-ruralistas está a pretensão de desmantelamento dos territórios indígenas para disponibilizar mais terra para o latifúndio mediante o argumento grotesco que os indígenas detêm muita terra. Ora, os 152 mil grandes proprietários rurais do Brasil acumulam 471 milhões de hectares ou 55.4% da área territorial do país, enquanto 1.7 milhão de indígenas ocupam 118 milhões de hectares. Ou seja, 152 mil grandes proprietários possuem 353 milhões hectares a mais que a área indígena total do Brasil.
Artigo originalmente publicado no Congresso em Foco