Relatos de estupros, venda de drogas, assaltos, furto de água e energia elétrica, faixas pedindo intervenção militar e, até mesmo, uma bomba montada dentro do acampamento – posteriormente utilizada num atentado nos arredores do Aeroporto de Brasília – foram registrados no acampamento golpista que ficou por 69 dias instalado em frente ao QG do Exército em Brasília.
Apesar de tudo isso, o responsável pela administração do entorno do quartel, o general Gustavo Henrique Dutra, classificou a micarê antidemocrática como “manifestação popular e pacífica” e disse desconhecer o caráter golpista da ocupação. De lá saíram muitos dos criminosos que terminaram por atacar a sede dos Três Poderes no dia 8 de janeiro, na esperança de conseguir um golpe de Estado.
O depoimento do general Dutra teve uma sequência de contradições constatadas pela relatora, senadora Eliziane Gama (PSD-MA), que chegou a levantar a hipótese de realização de acareações para compreender as versões diferentes apresentadas acerca dos mesmos fatos.
Uma das contradições constatadas pela relatora foi o fato de o general Dutra ter dito não saber da presença de militares da reserva frequentando o acampamento, apesar do farto material nas redes sociais com ex-militares conhecidos como “boinas vermelhas” nos arredores do QG do Exército. A presença desse grupo também consta de informes de órgãos de inteligência. Mesmo assim, o general disse não ter recebido tais informes sobre o grupo.
O general também afirmou que o bolsonarista George Washington Sousa, preso por participar do ataque à bomba no Aeroporto de Brasília, em dezembro do ano passado, não frequentava o acampamento golpista.
Eliziane Gama mostrou imagens de George Washington no acampamento na companhia de Alan Diego dos Santos, que usava tornozeleira eletrônica ao frequentar o acampamento e também participou do planejamento do ataque nos arredores do aeroporto.
De acordo com o general, as ações realizadas foram planejadas e coordenadas com objetivo de “evitar danos advindo de um eventual emprego de tropa”. Segundo ele, a “estratégia indireta” de desmobilização dos manifestantes foi “adequada” e “implicou a prevalência das ações que evitavam qualquer enfrentamento direto com os manifestantes”.
A senadora Eliziane Gama questionou se não houve leniência por parte do general com os golpistas, já que a área do QG do Exército é uma área de segurança. O próprio general reconheceu que no dia 15 de novembro do ano passado cerca de 100 mil pessoas estavam diante do Quartel-General em Brasília e, mesmo assim, os acampamentos só foram desmobilizados no dia 9 de janeiro deste ano.
“Os mais de cem ônibus que chegaram em Brasília para o 8 de dezembro desembarcaram exatamente lá no acampamento. Portanto, o Exército sabia da convocação, o Exército sabia do evento em si, que era a tomada do poder, sabia da dimensão do público, e mesmo assim, o Exército manteve o acampamento nas mesmas condições e, portanto, dando guarida a esses manifestantes, que depois vieram aqui para a Praça dos Três Poderes. Não houve uma ação enérgica, não houve uma atitude por parte do Exército Brasileiro em relação a esses manifestantes”, destacou a senadora Eliziane Gama.
Por que militares não impediram acampamentos?
O senador Rogério Carvalho (PT-SE) também questionou os motivos que levaram o general Dutra a ser tão permissivo ao ponto de deixar milhares de arruaceiros golpistas se instalarem nos arredores de uma instalação militar.
“Por que deixaram acumular pessoas em frente de quartéis? Essa é a pergunta que ninguém responde. Manifestação pacífica em frente de quartel? Não pode! Não se justifica um aquartelamento sob a proteção do próprio Exército. Membros da própria PMDF disseram que não tinham acesso e não podiam desmobilizar [o acampamento] porque o Exército não permitia”, destacou o senador.
O general Dutra declarou nunca ter agido para impedir o desmonte do acampamento. A relatora, contudo, citou três operações organizadas pelo governo do Distrito do Federal que não puderam ser executadas. Por se tratar de área do Exército, era preciso anuência dos militares para haver atuação da Polícia Militar.
De acordo com o general, o então comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, foi o responsável por ordenar o cancelamento de uma operação da Polícia Militar do Distrito Federal para desmobilizar o acampamento golpista no dia 29 de dezembro do ano passado. Mas ele não deu informações sobre as outras duas que teriam sido impedidas.
A senadora exibiu vídeos de dois oficiais da PM e do então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal afirmando, à CPI dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa do DF, que o Exército impediu a retirada das barracas.
A senadora Eliziane Gama disse que as diferentes versões apresentadas pelo general e a relatada pelos policiais à CPI do DF mereceriam ser alvo de uma acareação entre as partes. Mas o curto prazo para a conclusão dos trabalhos da CPMI deve impedir a realização desse tipo de checagem de versões conflitantes.
“A gente tem tão pouco tempo na CPMI, mas eu acredito que a gente deveria ter acareações nessa comissão, porque é impressionante como a gente percebe que alguns depoentes conflitam de forma drástica um com o outro”, defendeu.