Para surpresa de absolutamente ninguém Jair Bolsonaro indicou o advogado-geral da União, André Mendonça, para o Supremo Tribunal Federal na vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que se aposentou no início do mês de julho.
Longe de ser um tema da burocracia, a indicação é de relevante interesse social, haja vista que um ministro do STF se posiciona sobre temas que afetam a vida de milhões de pessoas, decide sobre interesses de todos os grupos sociais e pode mesmo alterar a história do país.
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Em nenhum lugar como em um Tribunal que é o topo da pirâmide do Poder Judiciário a independência é tão essencial. Sem ela, a própria República submerge, tendo em vista que a última palavra não pode ser facciosa ou conspurcada por interesses que não sejam do conjunto da sociedade.
Um magistrado que se vergue à chamada “opinião pública” ou ao “clamor popular”, que altere sua posição para agradar grupos ou pessoas, que não interprete as normas tendo em conta o interesse público, mas seus próprios ou de outrem ou que, por temer a repercussão política de suas decisões, compatibilize seu juízo às expectativas majoritárias ou, por fim, vincule-se a princípios de outra natureza alheios à Constituição, se transforma, de fato, em um indivíduo cujo exercício de poder se torna um perigo para a democracia e para a sociedade.
André Mendonça exerceu o cargo de ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Sua passagem pelo ministério ficou marcada pela produção de um dossiê sobre a atuação de 579 professores e policiais identificados como antifascistas.
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Documento esse que ele assumiu a existência perante os parlamentares que integram a comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência do Congresso Nacional, em agosto de 2020, afirmando tratar-se de “relatório de inteligência”, sem consegui explicar, contudo, a motivação da presença das pessoas na lista, criada por uma secretaria sob seu comando e sem competência formal para qualquer ação dessa natureza.
À frente da pasta da Justiça ele também utilizou a Lei de Segurança Nacional (Lei 7170/83) para instar a Polícia Federal a instaurar inquéritos contra adversários e críticos ao presidente Jair Bolsonaro, incluindo jornalistas e colunistas, como Ruy Castro, Ricardo Noblat e Hélio Schwartsman, e advogados como Marcelo Feller, o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, Guilherme Boulos, além de professores, cidadãos e cidadãs Brasil afora pela instalação de outdoors com críticas a Bolsonaro sem qualquer relevância do ponto de vista jurídico-penal.
A passagem de Mendonça pelo Ministério da Justiça não produziu uma só iniciativa apreciável, e sua saída se deu em um dos momentos mais graves da história do nosso país, inclusive na área de segurança pública, com o crescimento exponencial da violência policial contra jovens negros e pobres, crises provocadas por rebeliões de polícias em estados e ameaçando se alastrar.
Sobraram, entretanto, ações autoritárias contra a liberdade de expressão e manifestação, em que chamar de “pequi roído” e “genocida” ganharam contornos de crimes, com o uso deturpado de uma legislação anacrônica gestada por um regime autoritário.
A escolha de André Mendonça se dá, ainda, como aceno à base evangélica de Bolsonaro, cuja frase de indicar um nome “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal se tornou famosa e uma promessa, agora cumprida.
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Em uma interpretação sem base jurídico-constitucional de liberdade de crença, já no cargo de Advogado-geral da União, no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 811, Mendonça defendeu no Supremo Tribunal Federal a abertura dos templos em plena pandemia, citando a Bíblia ao invés da Constituição Federal, tratando a restrição de aglomeração como “discriminação de manifestações públicas de fé” e chegando a afirmar, diante dos riscos da Covid-19, que “cristão estão dispostos a morrer por sua fé”.
O discurso revelou uma assustadora ausência de distanciamento entre religião e Direito, entre a fé, categoria individual, e o interesse da segurança em saúde pública da coletividade. Dogmas, verdades inquestionáveis para quem é religioso, não podem jamais serem trazidos para o campo do Direito senão como um risco de ameaçá-lo. Tal o caso perverso da tentativa de interferência da religião nas normas sanitárias garantidoras de menos contaminação e mortes por um vírus letal.
Por um lado, ao usar a máquina pública para perseguir pessoas com a finalidade de censurar a crítica política, sem qualquer filtro preliminar do que poderia ser enquadrado criminalmente, Mendonça transformou o Ministério da Justiça em um órgão de censura, violando claramente o artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), por iniciar persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe que é inocente.
No outro ponto, a Bíblia é o livro a ser usado nos cultos, missas, celebrações religiosas. Ao Supremo cabe fazer cumprir e respeitar a Constituição Federal de um Estado que, por definição nela posta, é laico. Em um Estado laico são os princípios constitucionais que determinam a vida do cidadão, o respeito à tolerância, à diversidade e pluralidade.
É preciso reconhecer a gravidade das ameaças em curso ao Estado democrático de direito e a ocupação dos espaços de poder dentro das instituições como parte estratégica de uma corrosão progressiva.
Não se trata de diagnóstico precipitado. Tampouco de superestimar a previsibilidade. Os exemplos são por demais sintomáticos para serem negados. As posturas assumidas até aqui por André Mendonça são de um jurista “terrivelmente bolsonarista”, operador do grupo de fascistas tabajaras que se adornou do poder, sem apego ao Estado Democrático de Direito, mais que suficientes para que seja rejeitado pelo Senado Federal ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal.
*Tânia Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb (GCcrim/Unb). Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
(Artigo publicado originalmente no jornal Brasil de Fato)