AP 470: Um julgamento de exceção – Raimundo Rodrigues Pereira

STF, pressionado pela grande mídia, negou direitos básicos à defesa e, assim, criou regras de ocasião para interpretar o direito penal brasileiro.

EM MEADOS DE setembro, caminhando-se para o segundo mês de apreciação, pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), do mérito da Ação Penal 470 (AP 470), que julga os envolvidos no chamado mensalão, confirmam-se as previsões pessimistas feitas no início desse processo, quando uma petição da maioria dos advogados dos acusados alertou para a possibilidade de ser feito um “julgamento de exceção”. Na ocasião, os defensores dos réus já tinham sido derrotados em sua pretensão de desmembrar a ação penal, enviando para os tribunais inferiores os acusados sem foro privilegiado. No julgamento de um caso muito parecido, o dito mensalão tucano, que envolve políticos do PSDB de Minas Gerais, o STF tinha desmembrado o processo. Por que não fazê-lo no caso do mensalão petista, diziam os advogados? O segundo protesto foi contra mais uma medida excepcional: o fatiamento das decisões dos ministros. Isso ocorreu em função do encaminhamento do primeiro voto do julgamento, o do relator Joaquim Barbosa. Ele começou pela análise de crimes que teriam sido cometidos no uso de recursos públicos, um dos sete blocos em que subdividiu seu voto, e anunciou que, depois, passaria a palavra para os demais ministros votarem sobre o mesmo assunto.

Houve, então, certo tumulto no tribunal. O revisor do voto de Barbosa, Ricardo Lewandowski, disse que o encaminhamento contrariava o regimento do STF e ameaçou renunciar. O ministro Marco Aurélio de Mello condenou a proposta de Barbosa. O presidente do STF, Ayres Britto, iniciou uma contagem de votos para decidir a forma de votação, mas não a concluiu e acabou decidindo que cada um votaria como quisesse, o que, como alguns ministros argumentaram imediatamente, causaria uma confusão tremenda. O julgamento foi suspenso depois do voto de Barbosa, feito da forma fatiada, como escolhera, e recomeçou na sessão seguinte, após um acordo entre os ministros. Lewandowski tinha, então, recuado: reorganizou seu voto e votou, como Barbosa, também na forma fatiada.

Na primeira derrota, os defensores queriam garantir aos réus o direito, expresso na Constituição brasileira, da dupla jurisdição: poder apelar da sentença a um tribunal mais alto. No julgamento pelo STF, corte acima de todas, esse direito praticamente não existe. E é preciso destacar que somente dois dos réus têm de ser julgados pelo STF, porque são deputados e têm foro privilegiado; 36 dos 38 não o têm. Os defensores dos réus foram derrotados sob o argumento de que se tratava de um processo único, no qual todos os acusados têm ligação com o grande crime que teria sido cometido, o da compra de votos por um “núcleo político” do PT e do qual faria parte José Dirceu, então chefe da Casa Civil do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No caso do fatiamento, ao argumentarem que o processo é um todo e seria mais justo ouvir o voto integral de cada ministro, os advogados dos acusados foram derrotados sob o argumento da conveniência: dividir o julgamento em partes facilitaria a compreensão das decisões.

Afinal, pode-se perguntar: é um grande e único crime que obriga enfiar 38 pessoas num mesmo saco, mesmo desrespeitando direitos claros da grande maioria deles? Ou se trata de criar sete fatias de crimes que devem ser puxados de uma cartola de modo planejado, para criar um clima que ajude a condenar os petistas a qualquer preço, como mostramos nesta edição, em “O herói do mensalão”. O artigo descreve as gestões do ministro Barbosa, que atua mais como promotor do que como juiz nesse caso, empenhado praticamente numa campanha de opinião pública para vender a tese do mensalão.

A maioria do STF parece disposta a ultrapassar limites. Segundo depoimentos de vários de seus ministros, a corte não sabe o que fará no caso de um empate de votos. Com a aposentadoria de Cezar Peluso, logo após o encerramento da primeira fatia da discussão, permaneceram dez ministros. Eles estariam discutindo o que acontecerá se houver uma decisão com cinco de um lado e cinco de outro: o presidente da corte, Ayres Britto, votará ou não pelo desempate? É uma duvida descabida. In dubio pro reo, lembrou Nelson Calandra, presidente da Associação dos Magistrados do Brasil, referindo-se a um dos pilares do direito penal, o princípio da presunção da inocência, segundo o qual, em caso de dúvida, o acusado deve ser considerado inocente. “Nunca vi presidente de tribunal votar duas vezes para condenar alguém”, disse Calandra.

A palavra de ordem que prevalece no STF no julgamento do mensalão petista parece ser: flexibilizar o direito penal. “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”, diz o Código Penal brasileiro no artigo 155. Isso significa dizer, no caso: os juízes não podem basear suas decisões principalmente nos indícios colhidos pelas investigações do Congresso Nacional e nas duas dezenas de inquéritos da Polícia Federal (PF) feitos a partir da denúncia do mensalão, quando o deputado Roberto Jefferson declarou que o PT estava pagando uma mesada a parlamentares e assim corrompendo o Congresso. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, por exemplo, comandou investigações. Do seu trabalho resultaram cassações de mandatos e renúncias de parlamentares e na sua conclusão ela encaminhou o pedido de indiciamento criminal de dezenas de pessoas.

A CPMI não condenou criminalmente ninguém. Os depoimentos que ouviu, as perícias que promoveu, as acusações que fez são indícios que podem ser usados na AP 470, é óbvio. Mas as provas essenciais, diz a lei brasileira, são produzidas judicialmente, são as que estão nos autos do processo. O valor determinante para um julgamento é o das provas apresentadas diante de um juiz, num ato no qual o contraditório, a participação da parte contrária, é indispensável, para que seja garantido outro princípio do processo penal: o do amplo direito de defesa. Sob o argumento de que estão julgando um crime dos poderosos, com ampla capacidade de manipulação e ocultação de provas de suas atividades “tenebrosas”, para usar a expressão de um deles, os ministros que formam a atual maioria, empenhada em condenar os mensaleiros, estão invertendo o princípio: relativizam a importância das provas produzidas em juízo e ampliam o peso dos indícios e contextos que sacam aqui e ali da fase do inquérito policial ou das investigações da CPMI.

Vejam-se, por exemplo, os votos dos ministros Luiz Fux e Rosa Weber na condenação do deputado João Paulo Cunha por crime de peculato. A ministra deu um exemplo curioso: “Tem-se admitido, em matéria de prova, uma certa elasticidade na prova acusatória, valorizando-se o depoimento das vítimas. É como nos casos de estupro. Nos delitos de poder não pode ser diferente”. A ministra parece estar muito impressionada com os comentaristas dos grandes jornais conservadores, que querem a condenação dos petistas a qualquer preço, e confunde seus clamores com indícios para condenar o “poderoso” Cunha, um ex-metalúrgico – como Lula –, que foi presidente da Câmara dos Deputados.

* Raimundo Rodrigues Pereira é jornalista, fundador do Jornal Movimento e atual supervisor editorial da revista Retrato do Brasil

http://www.retratodobrasil.com.br/

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