Garantia do cidadão

Aprovado projeto que pune abuso de autoridade

A líder do PT, Gleisi Hoffmann (PR), lembrou que a construção de qualquer legislação tem que ter o foco no interesse e no direito dos cidadãos e cidadãs
Aprovado projeto que pune abuso de autoridade

Foto: Alessandro Dantas

Após três leituras de relatório, duas audiências públicas e um debate em Comissão Geral, o Plenário do Senado aprovou, na noite desta quarta-feira (26), o parecer do senador Roberto Requião sobre a proposta que atualiza a legislação sobre abuso de autoridade.

A matéria chegou ao Plenário em regime de urgência, após ter sido finalmente aprovada — por unanimidade — na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no início da tarde.

O projeto aprovado descreve 30 condutas que passarão a ser punidas como abuso de autoridade. Entre elas, manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento, como no caso ocorrido no Pará, quando uma juíza mandou encarcerar uma menina de 15 anos de idade na mesma cela onde estavam mais de 20 homens adultos.

Também estão tipificadas a divulgação de gravação sem relação com a prova, expondo a intimidade ou a vida privada ou a honra do investigado ou acusado, a decretação de condução coercitiva sem prévia intimação ao juízo.

As punições, além da possibilidade de prisão, serão a obrigação de indenizar a vítima do abuso, a inabilitação para o exercício do cargo por um a cinco anos e perda do cargo. Para que ocorram estas duas últimas consequências, é necessário haver reincidência. Ficam submetidos a essa legislação todos os servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas—integrantes dos poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e dos Tribunais e Conselhos de Contas.

Incômodo às corporações
O projeto (PLS 280/16) sobre abuso de autoridade foi elaborado pela Comissão da Consolidação da Legislação Federal e da Regulamentação da Constituição, instituída pelo Senado em 2009 —composta, entre outros pelo então desembargador Rui Stoco, o futuro ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki  e pelo ex-secretário da Receita Federal no governo FHC Everardo Maciel — para atualizar a legislação em vigor, que é de 1965.

A matéria passou a tramitar apenas no ano passado, subscrita pelo então presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL) e causou incômodo a parcelas das corporações da chamada “elite” do funcionalismo público — juízes, procuradores, delegados federais e fiscais da Receita. Esses grupos bombardearam a proposta afirmando que seu objetivo seria “deter a Operação Lava Jato”. Enquanto isso, apenas em 2015 o Conselho Nacional de Justiça catalogou 21 mil casos de abuso de autoridade. O delito muitas vezes deixa de ser punido exatamente pelas falhas da lei em vigor.

Carteirada e afins
O líder da Oposição no Senado, Humberto Costa (PT-PE), criticou o maniqueísmo que tenta tratar uma série de iniciativas essenciais ao País como contra ou a favor da Lava Jato. “Nós estamos pensando muito mais profundamente. Pensando na população das periferias, vítima cotidiana da truculência policial, do desrespeito às suas garantias e aos seus direitos individuais mais elementares”, destacou.

Humberto defendeu também a necessidade coibir a autoridades — parlamentares, inclusive — que usam o prestígio pessoal para se beneficiar, como nas chamadas carteiradas. “Tenho certeza de que a maioria esmagadora das autoridades cumprirá essa lei sem a menor dificuldade”. A oposição à proposta, asseverou o senador, vem principalmente daqueles “que querem assumir responsabilidades que não são suas, querem legislar em nome do Parlamento em vez de se tornarem parlamentares e querem executar em vez de irem buscar o voto popular para serem chefes de Executivo”.

Contribuições do Judiciário e MP
O PLS 280 chegou a ser debatido em uma Comissão Geral — audiência pública especial, realizada no Plenário, coma presença da totalidade dos senadores — que ouviu os juízes federais Sérgio Moro e Sílvio da Rocha, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que fizeram uma série de sugestões incorporadas pelo relator.

Posteriormente, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, também apresentou propostas de aperfeiçoamento da matéria, consideradas por Requião. O mesmo Janot, porém, acabou por apresentar um projeto alternativo (PLS 85/17), subscrito pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP). O relatório de Requião tratou dos dois projetos.

O direito do cidadão comum
Aos que pretendiam interditar a tramitação da matéria sob o pretexto de “preservar a Lava Jato”, a líder do PT, Gleisi Hoffmann (PR), lembrou que a construção de qualquer legislação tem que ter o foco no interesse e no direito dos cidadãos e cidadãs, e não em situações de exceção e que parlamentares, legitimamente eleitos, têm a prorrogativa de aprovar leis. “Será que uma lei que será aplicada pelo Ministério Público e julgada pelo Judiciário tem o poder de afetar ações de procuradores e juízes? É claro que não!”, ressaltou ela.

Para a senadora, a mobilização contrária ao projeto, capitaneada pela grande imprensa e setores das corporações, mostra que o autoritarismo contagiou todas as instâncias e esferas de atuação do Poder Judiciário. “Não de todos os seus membros. Mas há, dentro das corporações, agentes que não querem se submeter às leis que limitam suas atuações. Há uma espécie de universalização do arbítrio como solução de todos os males”.

Divergências sanadas
Foram três horas de debate na CCJ, até que uma redação de consenso assegurarasse o voto favorável ao projeto de todos os integrantes do colegiado presentes à reunião. A resolução das duas divergências centrais pavimentou o caminho para a aprovação da proposta em Plenário.

Essas divergências diziam respeito ao tipo de ação penal para a punição dos abusos e à possibilidade de criminalização de interpretações da lei, que são prerrogativas dos magistrados.

Requião propunha dois tipos de ações penais, a pública incondicionada, que só pode ser aberta pelo Ministério Público, e a ação privada, que é iniciativa da vítima. O bloco conservador de senadores queria que apenas o Ministério Público pudesse tomar iniciativa de abrir o processo por abuso de autoridade. Uma emenda do senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) aceita por Requião, resolveu a questão: a ação penal privada é possível, mas só se o MP não propuser ação pública no prazo legal.

Um apelo de Gleisi, acatado por Requião, foi decisivo para sanar a segunda divergência. Ele incorporou a emenda de Antonio Anastasia (PSDB-MG) excluindo a condição de que a interpretação da lei feita pelos magistrados seja “necessariamente razoável e fundamentada” para que a divergência na interpretação da lei não configure abuso de autoridade. Isso pacificou o colegiado e garantiu a unanimidade.

Foro privilegiado
A CCJ também aprovou o relatório favorável do senador Randolfe Rodrigues à proposta de emenda à Constituição (PEC 10/2013), que extingue o foro por prerrogativa de função, o chamado “foro privilegiado” para parlamentares, integrantes de altos escalões e uma série de agentes públicos. Se a matéria for aprovada, apenas os chefes dos três Poderes continuarão a ser julgados exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal.

A comissão também aprovou a elaboração de um calendário especial de tramitação do texto no Plenário, para acelerar o rito de tramitação.

Com a extinção do foro privilegiado, mais de 50 mil ocupantes de cargos públicos passarão a ser julgados pelas instâncias regulares da Justiça nos casos de infrações penais comuns. Entre essas autoridades estão governadores, prefeitos, presidentes de câmaras municipais e de assembleias legislativas e presidentes de tribunais superiores e de justiças dos estados.

A mudança não atinge crimes de responsabilidade e os cometidos em decorrência do exercício do cargo público, como os contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do país; a probidade na administração; a lei orçamentária; o cumprimento das leis e das decisões judiciais, entre outros.

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