Em 1987, no momento em que o Congresso Nacional se preparava para discutir uma nova Constituição depois de duas décadas de ditadura militar (1964-1985), quatro deputados federais se reuniram para garantir que a questão racial entrasse em pauta e criaram a Bancada Negra.
O grupo formado por Paulo Paim (PT-RS), Benedita da Silva (PT-RJ), Edmilson Valentim (PCdoB-RJ) e Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos (PDT-RJ), a maioria em primeiro mandato, canalizou demandas do movimento negro e pautou discussões na Constituinte —desde temas como territórios quilombolas até a criação de uma lei contra racismo que fosse além daquela vigente até então e que tornou o crime inafiançável.
“Queremos proclamar a nossa abolição, não é ódio, nem rancor, apenas um grito de liberdade”, bradou Benedita no plenário da Câmara, na época.
Entre os 559 parlamentares constituintes —72 senadores e 487 deputados federais—, os quatro integrantes da bancada levantavam, então, um tema difícil de ser enfrentado em meios institucionais, no país que havia se tornado o último a abolir a escravidão no Ocidente, quase cem anos antes.
“Quando nós lutamos por essas bandeiras, na verdade, denunciamos um sistema falido. O sistema faliu com o povo negro brasileiro. Ele não consegue sair do seu estado de espírito conservador para tratar com a maioria da população”, diz Benedita, hoje aos 79 anos e deputada federal no quinto mandato, terceiro consecutivo.
Eleita pela primeira vez em 1986, Benedita era conhecida pela atuação junto a movimentos de favelas do Rio de Janeiro. Na Constituinte, era a única mulher na mesa diretora.
Caó, jornalista e perseguido pela ditadura, deixou a Câmara na legislatura anterior para assumir uma secretaria no governo de Leonel Brizola (PDT-RJ). Suplente em 1986, voltou ao Parlamento pouco antes do início da Constituinte, ocupando uma vaga depois da morte de outro parlamentar.
Vindo do sindicato dos metalúrgicos em Canoas (RS), Paim foi o único candidato a deputado federal pelo PT gaúcho então. Ele lembra uma ligação de Benedita, após ser eleito, e o convite para conversarem quando chegasse a Brasília. Ele e Edmilson também eram estreantes em Brasília, ambos ligados a movimentos de trabalhadores.
“Sempre tive uma afirmação da questão da minha cor, da minha raça. A integração na bancada foi uma coisa natural, porque você tinha, na Constituinte, uma sede de participação democrática”, afirma Edmilson, 58, na época um dos mais jovens eleitos.
Os quatro nomes da Bancada Negra, porém, não eram os únicos negros no Parlamento de 1987. Uma pesquisa de Thula Pires, doutora em direito pela PUC-Rio, identificou 11 nomes no Congresso de políticos negros eleitos naqueles anos.
“Não é que não tivessem outros. Tem uma frase que diz que não basta ser negro, tem que assumir a negritude. No dia a dia, como é, como você participa da vida no país se apresentando como homem negro ou mulher negra?”, diz Paim, 71.
Ele lembra posições que marcaram o grupo, como a defesa pela libertação de Nelson Mandela e a visita à África do Sul, de onde voltaram com um documento entregue por Winnie Mandela que inspiraria o Estatuto da Igualdade Racial.
Entre os parlamentares brasileiros da época era comum o discurso de que o Brasil era uma democracia racial, com desigualdades cunhadas em questões sociais, não necessariamente raciais, aponta Natália Neris, doutoranda em direitos humanos pela USP e autora de “A Voz e a Palavra do Movimento Negro na Constituinte de 1988” (Casa do Direito, 2018).
“Era visto como separatismo, como algo difícil de ser implementado, mas parlamentares, nomeadamente Benedita, apontavam que não havia intenção de separatismo, mas de igualdade. Era só olhar para o Parlamento e entender que havia sim um tipo de segregação no Brasil. Como tinham tão poucos parlamentares negros?”, diz ela.
Segundo Neris, no início dos anos 1970, o movimento negro brasileiro entrou em uma fase reivindicativa, com compreensão maior das desigualdades raciais e entendendo o Estado como responsável por resolvê-las, ao mesmo tempo em que suas manifestações culturais eram reprimidas pela ditadura militar. No final da década, em 1978, surge o MNU (Movimento Negro Unificado).
Com o retorno do pluripartidarismo, o movimento se aproxima então ao campo progressista e a partidos mais à esquerda, como PT e PDT, levantando demandas múltiplas durante a Constituinte, aponta Neris, e com diálogo próximo aos parlamentares —Lélia Gonzalez, intelectual e militante, foi assessora de Benedita.
“Influenciávamos, naquele momento, os brancos, para que os brancos pudessem estar conosco. Foi uma série de demandas do movimento negro que nós absorvemos e conseguimos introduzir na Constituição brasileira”, afirma Benedita.
O avanço na legislação sobre racismo é considerado pelos membros restantes da Bancada —Caó morreu em 2018, aos 76 anos— uma das grandes conquistas do grupo. Na nova Constituição, o racismo foi incluído como crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, tendo a Lei Caó aprovada em 1989.
“Sem essa bancada, a discussão aconteceria com muito mais dificuldade durante o processo constituinte ou de forma muito mais empobrecida”, avalia Natália Neris.
Ainda que com as duas Casas majoritariamente brancas, passados 34 anos, a especialista observa que o número de projetos voltados a questões raciais tem crescido a cada nova legislatura no Congresso.
Porto Alegre, capital onde foi criado o Dia da Consciência Negra há 50 anos, ganhou uma Bancada Negra na Câmara de Vereadores nas eleições de 2020.
“A nova Constituição só saiu por força da luta pela democracia, contra a ditadura. Ela foi escrita sob esse manto e sob ele conseguimos muitas vitórias. Vitórias essas que não foram completas porque precisavam ser regulamentadas e as forças pós-Constituinte, conservadoras, se articularam e não deixaram ser implementadas como deveriam ser. Naquele momento se avançou, mas conseguiram travar”, diz Edmilson.
Benedita, que nos anos na vida pública desde a Constituinte recebeu ofensas escritas em papel higiênico e ouviu apelidos racistas, especialmente ao defender o sistema de cotas, diz que, sem enfoque racial nas discussões, o Brasil não irá para lugar nenhum.
”A Constituinte foi um encontro do Brasil com ele mesmo. Se a Constituição não ficou do jeito que gostaríamos é porque a representatividade dos demais setores eram minoritários e você começou a trabalhar aquilo que era estratégico e prioritário para desencadear depois, como o fizemos, outras políticas como as políticas afirmativas”, diz ela.
Paim, com mandato no Senado desde 2003, conta que, quando aborda projetos ligados à pauta racial, ainda ouve: “lá vem o Paim de novo com essa questão dos negros”. Ao olhar para trás, ele diz que acha que o cenário geral mudou pouco em matéria de legislação, apesar de alguns avanços.
“Democracia com racismo não existe. Falar da questão racial, para muita gente foi muito, porque lembra o passado, e muita gente não quer falar. Mas tem que falar. É aquela história, quando tem uma ferida, tem que tratar.”
(da Folha de S.Paulo)