O presidente Jair Bolsonaro deve ser responsabilizado pelas quase 630 mil mortes causadas pelo coronavírus. O senador Fabiano Contarato (PT-ES) considera que chefe do Executivo tem sido omisso de maneira intencional.
As mortes na pandemia fazem parte de um conjunto de crimes aos quais ele deve responder e pelos quais deve ser preso.
Professor de Direito e delegado licenciado do estado do Espírito Santo, Contarato afirma que a Constituição obriga que o Estado brasileiro proteja e cuide da população, o que o atual governo jamais fez em três anos do mandato de Bolsonaro. Além da pandemia, o presidente tem cometido muitos outros crimes.
Apesar do estrago causado no país pelo governo genocida, Contarato mantém a esperança de que o próximo presidente, que ele espera que seja Luiz Inácio Lula da Silva, tenha a capacidade de contornar a crise e coloque o Brasil de “volta aos trilhos”. Recém-chegado ao Partido dos Trabalhadores e ainda em seu primeiro mandato, o senador considera que muitas transformações precisam ser feitas para que o país possa se transformar numa sociedade mais justa e fraterna. A seguir, trechos da entrevista concedida à revista Focus Brasil.
Focus Brasil — Bolsonaro pode ser preso após deixar a Presidência da República?
Fabiano Contarato — Eu não tenho dúvida disso. Foram inúmeros crimes praticados por ele. A legislação brasileira responsabiliza uma pessoa pela prática de um crime não só por um comportamento positivo, por uma ação, mas também por omissão. E isso foi muito evidenciado, principalmente, no enfrentamento da Covid. O Código Penal é claro quando estabelece que a omissão é penalmente relevante quando o agente teria por lei a obrigação de proteção, vigilância e cuidado. E o direito à saúde pública é um direito humano essencial, mas também é um direito constitucional previsto nos artigos 6º e 196 da Constituição.
É o Estado brasileiro quem tem legitimidade para dar efetividade a essa garantia constitucional.
Então, quando o presidente da República se omite deliberadamente, intencionalmente… — e aí eu falo que essa omissão dele ocorreu também a título de dolo, porque dolo no Brasil não é só intenção. O Código Penal é claro quando diz no artigo 18: “Diz-se o crime doloso quando o agente quis o resultado”. Aí, dolo é intenção. Mas ele coloca uma conjunção alternativa: “Ou assumir o risco de produzir esse resultado”.
Estou me referindo a um ponto que foi levantado na CPI da Covid. Mas nós tivemos outros crimes praticados, tanto crimes entre os chamados “comuns”, mas também crimes de responsabilidade previstos por atos de improbidade administrativa e também em tratados e convenções internacionais, como crimes contra a humanidade.
— O senhor veio somar-se aos quadros do PT e será um dos principais apoiadores de Lula nesta próxima eleição. A herança que Lula vai receber de Bolsonaro pode ser chamada de maldita?
— Lula é um grande estadista, que demonstrou já ser um brilhante gestor. E o que eu acho mais importante é que ele não é um gestor neoliberal, é um gestor sempre vinculado com a pauta social, com a pauta de direitos humanos.
Quando se fala em direitos humanos, é na essência da expressão aquilo que foi construído lá em 1979 pelo jurista tcheco Karel Vasak, inspirado pelos princípios da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. E isso abrange meio ambiente, a liberdade, o devido processo legal, direito ao trabalho, à saúde, à educação, uma redução da carga tributária… O estrago aqui foi muito grande. Mas tenho a plena convicção de que a competência do presidente Lula, sendo eleito presidente da República e com uma equipe que tenho certeza de que será um time capaz de dar condições para que ele coloque o Brasil nos trilhos novamente.
Com desenvolvimento, redução da desigualdade, diminuição do abismo entre os milhões de pobres e a concentração de riqueza nas mãos de tão poucos. Vai ser um trabalho difícil, mas eu não tenho dúvida da competência dele em saber administrar como muito bem já demonstrou nos seus oito anos de governo e depois com o trabalho da presidenta Dilma, quando a sociedade brasileira pôde entender o que é o mínimo de dignidade da pessoa humana em todos os aspectos. Foi nesse período em que tivemos todos os avanços que obtivemos nas pautas sociais, tudo fruto de programas executados pelo Partido dos Trabalhadores.
— O senhor é um dos senadores mais ativos da atual legislatura. É possível elencar quais áreas tiveram mais prejuízos causados por Bolsonaro?
— É difícil elencar onde não teve perdas. Em plena pandemia, o presidente cortou 22% da verba da Saúde. As pessoas, antes da pandemia, e falo isso com conhecimento de causa porque venho de uma família pobre que sempre utilizou o Sistema Único de Saúde, já morriam nos corredores dos hospitais públicos. Os pobres, quando precisam fazer cirurgias ou quando precisam fazer exames de determinada complexidade, infelizmente não conseguem fazê-los. E agora, com a pandemia, isso se agravou. Ao mesmo tempo, fez um aporte no Ministério da Defesa de mais de 22%. Então, o que é prioridade no governo? Ora, o principal bem jurídico a se proteger é a vida humana, o respeito à integridade física e à saúde.
Não sou eu que estou falando. O abre-alas do Código Penal são os crimes contra a vida porque está se tutelando ali a vida humana. O desmonte feito no Ministério da Saúde é muito grave.
E ainda há crimes em outras áreas chave, como meio ambiente.
— Sim. No Ministério do Meio Ambiente, se voltarmos ao período antes de Bolsonaro se tornar presidente, ele já almejava acabar com a pasta. Não acabou de direito, mas acabou de fato. E eu pontuo: acabou com a Secretaria de Mudanças Climáticas, com o Plano de Combate ao Desmatamento, com o Departamento de Educação Ambiental… Ele criminaliza ONGs, reduz a participação da sociedade civil, dos membros do Conama, proliferou agrotóxicos.
Temos que falar também do que está sendo feito pelo governo com os povos indígenas. Quando era presidente da Comissão do Meio Ambiente, fui até os Guarani-Kaiowás, em Mato Grosso do Sul. Estão sendo dizimados. Há crimes que são verdadeiros ecocídios. Acabam de completar três anos de Brumadinho. Tem também Mariana, Barão de Cocais, Miraí, Cataguases, isso tudo só em Minas Gerais. Sem falar em extração de urânio. O desmonte na área ambiental é gigantesco.
Na Educação, quantos ministros tivemos neste governo? Houve aquele importado — o [Ricardo] Vélez [Rodríguez], que chegou ao ponto de estimular os diretores a filmarem os alunos cantando o slogan do presidente da República. Depois, estimulou os alunos a filmarem os professores em sala de aula, violando a liberdade de cátedra. Ainda houve um ministro que chegou a falar que era necessário cortar verba dos cursos de Filosofia, Sociologia e Antropologia… O argumento era de que não davam retorno. Ora, minha formação é no Direito. Mas eu não seria nada se não tivesse feito leituras quer passam por Hobbes, Rousseau, Maquiavel. Eu não seria nada se não tivesse o embasamento que passa por essas áreas. Tivemos um outro ministro da Educação que teve a nomeação cancelada por irregularidade no conteúdo do currículo. E ainda temos o atual ministro, que chega ao ponto de dizer que crianças com deficiências são terríveis de conviver ou que professores transsexuais não podem ensinar. Como se fosse possível mudar a orientação sexual de um aluno.
Há um desmonte geral…
— … na saúde, na segurança pública, na educação pública, na ciência e tecnologia, no meio ambiente… Vamos ter muito trabalho para colocar o Brasil nos trilhos do desenvolvimento, para tirar o país do Mapa da Fome mais uma vez.
Eu aprovei uma lei, batizada de Lei Padre Julio Lancelotti, que proíbe as técnicas de arquitetura hostil. O número de pessoas em situação de rua aumentou.
— E temos ainda a precarização das relações trabalhistas…
— A reforma trabalhista de 2017 veio com um discurso de que alavancaria a economia e geraria emprego e renda. E não foi isso o que aconteceu. Ali se “uberizou” a relação trabalhista. Estabeleceu-se a terceirização de atividade-fim, o regime de trabalho intermitente e que mulheres grávidas e lactantes podem trabalhar em ambientes insalubres.
Se não fosse o Supremo Tribunal Federal declarar essa medida inconstitucional, teríamos grávidas e lactantes trabalhando nessas condições. Em 2019, tivemos uma reforma da Previdência com o mesmo discurso e, mais uma vez, quem está pagando a conta é o trabalhador. Passou a ser uma missão impossível o trabalhador se aposentar. Agora, está aí “batendo na porta” uma reforma administrativa que vai criminalizar os servidores públicos, quando sabemos que a grande massa dos servidores está nos rincões das prefeituras pelo país e que ganham um pouco mais do que um salário mínimo. É fundamental lembrar que foi graças à estabilidade de um servidor público que o ex-ministro do Meio Ambiente foi denunciado. Também foi graças a essa estabilidade que um servidor do Ministério da Saúde denunciou irregularidades no contrato da Covaxin e isso impediu danos ao erário público.
Espero que o futuro presidente — tenho fé em Deus — seja o presidente Lula. E nós tenhamos a altivez de fazer o que já está na Constituição, que a União tem que taxar grandes fortunas. Esse dinheiro é que vai possibilitar o custeio de políticas públicas para dar dignidade à população brasileira que clama por uma sociedade mais justa, fraterna, igualitária, inclusiva e mais plural.
— Diante de tudo isso é preciso se indignar.
— Sim. Eu não posso perder a capacidade de indignação, jamais. Jamais.
— O senhor vem da Polícia Judiciária, é delegado no Espírito Santo. Entre os maiores países do mundo, o Brasil tem os menores índices de elucidação de crimes contra a vida. Como o senhor acha que um governo democrático pode contribuir para fortalecer a atividade policial e trabalhar na perspectiva de construirmos corporações antirracistas?
— Esse tema é muito sensível para mim. Mas para responder, preciso fazer uma retrospectiva. Temos que entender que, infelizmente, no Brasil, o Estado criminaliza a pobreza e a cor da pele.
Falo isso com conhecimento de causa porque fui delegado por 27 anos. Existia um criminólogo chamado Cesare Lombroso que falava que o criminoso é nato: “Ah, o formato da testa, o formato do nariz, da orelha”… As características físicas determinavam quem era um criminoso nato. E o Estado reproduz o Lombroso.
Não vejo, por exemplo, a polícia dando busca pessoal em jovens dos bairros nobres, mas vejo isso sendo feito diuturnamente em bolsões de pobreza onde o Estado não é presente. Nesses casos, direitos elementares estão sendo violados. Veja o perfil socioeconômico de quem está preso no Brasil: pobres, pretos e semianalfabetos. E isso ocorre quando os crimes de maior prejuízo são ocasionados por políticos: crimes contra a ordem tributária, contra o sistema financeiro, sonegação fiscal, corrupção ativa e passiva, peculato, concussão, contrabando e descaminho.
Qual é o porcentual da população carcerária presa por esse rol de crimes? Não tem. É assim porque há esse racismo estrutural, esse preconceito, esse sexismo, essa misoginia impregnados no Brasil.
— Por onde começar?
— Diante deste cenário, para reduzir a criminalidade e elucidar os crimes, a primeira coisa é derrubar essa política armamentista. Não se reduz a criminalidade armando a população. Muito pelo contrário. Sabemos que os destinatários dos disparos de arma de fogo — quem morre — são pobres e pretos. Mais uma vez, quem paga a conta é a parcela dos nossos irmãos brasileiros e brasileiras. Reduz-se a criminalidade proporcionando direitos que vão garantir a dignidade da pessoa humana. Estamos falando de iluminação pública nos bairros, saneamento básico, escolas públicas de qualidade, melhorias na educação, valorização dos professores, integrantes das forças de segurança pública – estabelecido no artigo 144 da Constituição Federal – equipados e que trabalhem com uma política tecnocientífica eficiente para a elucidação dos crimes, mas acima de tudo, para a capacitação dos agentes de segurança pública. Aprovamos um projeto de lei — do senador Paulo Paim (PT-RS) e para o qual contribuí – para determinar que na formação de todo agente de segurança, a formação seja feita passando pelo estudo dos direitos humanos.
— Os desafios são imensos.
— Quando se trata da pauta da segurança pública, é necessário que tenhamos a capacidade de primeiro fazer esse recorte histórico e sociológico sobre a criminalização da cor da pele e da pobreza pelo Estado brasileiro. Ou seja, diminuir a criminalidade não passa por armar a população. Essa é uma visão simplista, imediatista. É preciso dar as condições mínimas de dignidade para que os jovens tenham a possibilidade de acessar universidades e conseguirem empregos. Ao mesmo tempo, é preciso estimular as empresas a contratarem, fazer um trabalho de readaptação ao convívio sociofamiliar no caso dos reeducandos condenados, capacitando de forma permanente os agentes de segurança pública para que tenham esse olhar humanizador, empatia, para que se coloquem na dor do outro e não sejam utilizados longa manus, como uma mão para execuções impostas pelo Estado.
Infelizmente, hoje não é possível dizer que todos somos iguais perante a lei sem distinções de qualquer natureza. É algo que está longe de ser uma realidade.
— O senhor é professor de Direito, atuou como delegado e hoje é um legislador. Gostaria de lhe perguntar sobre a conduta do ex-juiz Sergio Moro. Ele posa de defensor de uma moral, como homem da lei. Qual é a sua opinião?
— Em 19 de junho de 2019, estava na comissão de Constituição e Justiça quando o então ministro Sergio Moro foi convidado a comparecer. Ele fazia parte do governo Bolsonaro, estava com uma credibilidade alta, como alguém intocável, digamos assim, perante a opinião pública.
E fiz uma fala técnica. Busquei a declaração universal de direitos humanos apontando que todo ser humano tem que ser julgado por um juiz isento e imparcial. Busquei dentro do Código da Magistratura que fala que o juiz tem que ficar equidistante — o princípio da paridade de armas. Busquei também o Código de Processo Penal e fiz uma fala sobre a quebra do princípio da imparcialidade. Os fins justificam os meios? É isso o que estava em jogo ali. Independente de quem estava sendo objeto de persecução penal ou quando fosse ser julgado. E quando nós tivemos num julgamento o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal de que aquele juiz foi parcial, isso é muito grave em uma democracia. É muito grave. Principalmente, porque, na ocasião, foi divulgado o áudio de uma presidenta da República e um ex-presidente por decisão monocrática. As conversas mantidas com o Ministério Público, orientando, conduzindo a investigação… Isso é muito grave dentro do que chamo de espinha dorsal do Estado Democrático de Direito, que é a Constituição.
Falo como professor de Direito Penal e de Processo Penal há 22 anos. Se fosse eu como delegado que tivesse mantido contato com o advogado do indiciado, e estivesse indiciando da forma como foi feito, tenho certeza de que teria saído preso. Isso não se faz dentro de uma democracia. É muito grave esse comportamento, esse reconhecimento. E agora ele aparece se intitulando como alguém que seria uma via para a solução, como uma opção para o Brasil. É o contrário: o comportamento dele demonstrou que não tem capacidade de se comportar como juiz porque para isso é preciso ser isento, neutro, imparcial.
Ninguém deveria ser julgado por um juiz parcial. Isso é muito grave dentro de uma democracia, dentro do Código de Processo Penal.
Hoje, é necessário que a sociedade entenda qual é a consequência desse comportamento. A gente não pode simplesmente ter uma amnésia e esquecer o que passou.
Temos que olhar pelo retrovisor e ver que aquilo foi um dano irreparável porque teve a digital dele para que nós chegássemos à situação em que estamos hoje.
Da mesma forma, tivemos a contribuição de muitos parlamentares para o golpe contra Dilma.
Defendo o impeachment do atual presidente desde o meu primeiro ano de mandato porque os crimes que vem perpetrando são incomensuráveis, são inúmeros.
E, por outro lado, o que Dilma fez para sofrer um impeachment com a digital de muitos parlamentares que hoje se intitulam até arautos da moralidade, da sapiência jurídica, mas que foram coniventes?
Agiram dolosamente para um comportamento que também foi misógino e sexista com relação à presidenta. Não podemos esquecer que o que estamos passando hoje é resultado desse processo.
Mesmo com relação à pandemia, quantas mortes teriam sido evitadas?
Alberto Cantalice e Pedro Camarão