Uma semana após o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrar o julgamento sobre o Marco Temporal e derrubar a tese de que os povos indígenas teriam o direito de ocupar apenas as terras já ocupadas ou em disputa em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado tomou o caminho oposto e aprovou o PL 2903/2023, que estabelece um marco para a demarcação de terras indígenas no país.
Pelo texto, para uma área ser considerada “terra indígena tradicionalmente ocupada”, deve ser comprovado que ela vinha sido habitada pela comunidade indígena em caráter permanente e utilizada para atividades produtivas desde a data de promulgação da atual Carta Magna. A proposta, relatada pelo bolsonarista Marcos Rogério (PL-RO), segue para análise do plenário.
Além disso, esses territórios também devem ser imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e essenciais à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
“Esse entendimento foi rejeitado por nossa Corte Constitucional”, rebateu o senador Fabiano Contarato (ES), líder do PT no Senado, ao apontar que o texto aprovado pela CCJ ia muito além da definição de um marco para a demarcação desses territórios.
“Esse projeto não trata apenas do marco temporal. Ele assegura, além da aculturação, também o contato com os povos isolados. Isso é risco para a saúde. Isso é risco para a vida desses indígenas que ali estão. E, sob esse pretexto de estar difundindo essa concepção de marco temporal, nós vamos aqui vilipendiar os direitos desses nossos irmãos, desses nossos parentes”, destacou Contarato.
A proposta permite que sejam desenvolvidas atividades nas reservas sem que as comunidades sejam consultadas e aponta que o usufruto dos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional. Pelo texto, também independem de consulta aos indígenas ou ao órgão indigenista federal competente, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a instalação de bases, unidades e postos militares.
Também independem de consulta a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas.
“Esse projeto de lei que, de forma inconstitucional, mexe numa série de aspectos que exigiriam emenda constitucional ou lei complementar, avança para eliminar ainda mais os direitos dos povos indígenas”, apontou o senador Humberto Costa (PT-PE), presidente da Comissão de Assuntos Sociais (CAS).
A matéria permite ainda a cooperação e a contratação de não indígenas para a realização de atividades econômicas em terras que, atualmente, são de uso exclusivo das comunidades indígenas. O texto aponta que a atividade deve gerar benefícios para a comunidade.
O senador Rogério Carvalho (PT-SE) criticou duramente a possibilidade de abertura da especulação econômica em cima das terras indígenas.
“Nós não precisamos derrubar nenhuma árvore mais para poder dobrar nossa produção agropecuária. Nós não precisamos de mais nada disso. Nós podemos garantir a segurança alimentar, nós podemos fazer tudo isso preservando as culturas, preservando os nossos povos originários”, disse.
Além de impedir a ampliação dos territórios já demarcados, a proposta prevê a possibilidade de esses locais, caso haja alteração nos traços culturais da comunidade, serem retomados pela União para o “interesse público ou social” ou serem destinados ao Programa Nacional de Reforma Agrária, com lotes “preferencialmente” destinados a indígenas.
Para o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), a argumentação utilizada pelos defensores da proposta é falaciosa. Os termos aprovados na proposição, segundo ele, não vão trazer segurança jurídica para a questão.
“Nós só estamos aqui vendo que legítimos pretendentes à posse da terra, sejam eles indígenas ou não indígenas, não terão sua vida resolvida”, resumiu o senador.
A senadora Augusta Brito (PT-CE) afirmou que, no Ceará, as comunidades indígenas têm a demarcação de suas terras como principal demanda e apontou que essa deve ser a mesma realidade da maioria das comunidades indígenas do país.
“Com relação aos povos indígenas que tenho contato no Ceará, a primeira reivindicação se trata da demarcação do seu território. Não acredito que seja diferente do resto do país. Algumas [opiniões] diferentes podem até existir, mas a grande maioria [pede como] primeiro ponto de reconhecimento histórico a demarcação do território”, explicou.
A CCJ ainda aprovou requerimento de urgência para a análise da matéria em plenário.