ARTIGO

Danem-se os pobres, os humilhados e os desesperançados

"Ainda não nos livramos da estupidez covarde, que faz com que os homens que detêm o poder tratem os seus semelhantes como meras mercadorias e números", critica o senador Paulo Paim
Danem-se os pobres, os humilhados e os desesperançados

Alessandro Dantas

Palavras cruéis têm o poder do aço afiado. Podem ferir a alma, matar os sonhos e levar ao cárcere a própria condição humana como que em um exílio em primeira pessoa. “E daí?”. Danem-se os pobres, os humilhados e os desesperançados. Mas elas são incapazes de controlar os ventos e destruir a verdade incondicional, que faz as horas e os tempos acontecerem.

A pandemia da Covid-19 é a pior crise na saúde, no campo social e na área econômica que o mundo está vivendo desde a segunda grande guerra. Completamos agora os 75 anos da assinatura da rendição. Aliás, lembro aqui da obra “Kaputt” (do alemão: quebrado, acabado, destroçado), do italiano Curzio Malaparte, escrito em 1944 e que retrata as crueldades desse confronto.

Um oficial nazista diz a um menino que não foi ele quem inventou a guerra. E, então, propõe um desafio: escute, eu tenho um olho de vidro. É difícil distingui-lo do verdadeiro. Se você descobrir, deixo você ir. O menino não hesita: o olho esquerdo. O oficial fica espantado. Pergunta como conseguiu descobrir. O garoto explica: porque, dos dois, é o único que tem algo de humano.

Ainda não nos livramos da estupidez covarde, que faz com que os homens que detêm o poder tratem os seus semelhantes como meras mercadorias e números, colocando-os no centro de suas disputas ideológicas, fracassos gerenciais e discursos que pregam a intolerância, o ódio e a violência. Somos, cada vez mais, governados por palavras cruéis e olhos desumanos.

Danem-se os que passam fome e os que sofrem de desnutrição. A ONU estima, segundo recente relatório, que o número de pessoas em situação grave de fome no mundo possa dobrar para 265 milhões até o final de 2020. Esse estudo não contabilizou os impactos sobre a segurança alimentar causado pela Covid-19. Estudo atualizado colocará esses números num patamar maior ainda.

Já a Oxfam alerta que a pandemia pode colocar mais de meio bilhão de pessoas na pobreza, caso os governos, o Banco Mundial, o FMI e o G-20 não atuem imediatamente para ajudar o emprego e a renda de setores inteiros de suas economias. A entidade estima que o número de pessoas que podem passar a ganhar menos de US$ 5,5 por dia aumentaria dos atuais 3,38 bilhões de pessoas para 3,9 bilhões. A América Latina poderá ganhar 54 milhões a mais de pobres, passando dos atuais 162 milhões para 216 milhões.

O Brasil, o país do futuro, como um dia escreveu Stefan Zweig, poderá pagar caro pelo desprezo às medidas restritivas de proteção à saúde. Milhares já morreram e a tendência é aumentar ainda mais. Estamos em via de sermos o epicentro do mundo. Há uma nítida falta de iniciativa do governo para responder à altura e com seriedade e espírito humanitário a essa crise, que está abalando o país, destruindo vidas e famílias, empregos, renda e empresas. Somos um sério problema para toda a América latina.

Estudo do Banco Mundial estima que o país poderá ter mais 5,4 milhões de pessoas na extrema pobreza, ainda em 2020. Pessoas vivendo com menos de US$ 1,90 por dia, ou quase 15 milhões de brasileiros, chegando a 7% da população, a maior taxa de miseráveis desde 2006. Já o PIB teria uma retração de 5%, o maior em 120 anos.

O país tem 50 milhões de pobres, 13,5 na extrema pobreza e 45 milhões trabalhando na informalidade, sem nenhum direito. Falam agora que, com a pandemia, poderemos ter 20 milhões de desempregados. Não será com R$ 600, em três meses, que vamos de fato, preencher as necessidades diárias da nossa gente. Sem contar o sério problema de saneamento básico que ainda não enfrentamos: 35 milhões de pessoas ainda não têm água tratada e 40% da população urbana não tem acesso à coleta de esgoto.

O Brasil não vai sair de toda essa crise se negar a conjunção de ideias sociais, humanistas e populares, resguardadas por uma concertação nacional que chame a todos para o diálogo e para a solidariedade. A democracia dos nossos sonhos não combina com pobreza e miséria. Os trabalhadores e o meio produtivo sério esperam de todos nós essa compreensão. Precisamos de políticas públicas fortes em relação aos negócios, emprego e apoio à renda, para que a economia possa ser ativada e a população amparada.

Danem-se as palavras cruéis e mal ditas e os verbos mal conjugados. Danem-se os olhos desumanos. Busquemos oxigênio, mesmo na escuridão. A resistência se constrói no indivíduo e se concretiza no coletivo. O país que há dentro de todos nós, nos pobres, nos humilhados e nos desesperançados não é o mesmo país daqueles que querem sufocar o grito da nossa gente e levar ao exílio o canto de esperança em mil canções de amor e nas flores que estão por nascer. Pois é aí que está o fogo ardente, a chama que brilha entre as montanhas e a nossa razão de viver.

Artigo originalmente publicado no Sul 21

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