Juristas e pesquisadores ouvidos na Comissão de Direitos Humanos (CDH) nessa quinta-feira (16) em audiência pública sobre o Estatuto do Trabalho — sugestão legislativa (SUG 12/2018) elaborada pela sociedade civil em lugar da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — criticaram duramente a Reforma Trabalhista de 2017, que associaram principalmente ao aumento da precarização no emprego e a obstáculos ao exercício dos direitos dos trabalhadores. Os debatedores também chamaram atenção para a relação entre denúncias de trabalho escravo e a expansão da terceirização.
Nesse sentido, o senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da CDH e relator da subcomissão que discutiu o Estatuto do Trabalho na legislatura anterior, lamentou a persistência do trabalho escravo, inclusive em notícias referentes ao Rio Grande do Sul, argumentando que negar a influência da terceirização nesse processo é fazer a todos de “inocentes úteis”.
“De cada dez trabalhadores resgatados, considerados em situação análoga à de trabalho escravo, nove são de empresas terceirizadas”, explicou.
Representando a Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho (ALJT), Hugo Cavalcanti Melo Filho disse ser urgente a aprovação do Estatuto do Trabalho como solução para os problemas das relações entre capital e trabalho e lamentou que a falta de “clima político” tivesse impedido a continuidade do debate sobre a matéria. Ele defendeu limites à terceirização e ao teletrabalho e cobrou a vedação da jornada ampliada de trabalho, que considera problemas gravíssimos da Reforma Trabalhista.
“Em primeiro lugar [é preciso enfrentar] a terceirização sem limites, que vem sendo o instrumento primordial do trabalho escravo no Brasil, como todas essas denúncias e descobertas têm revelado”, disse.
Melo Filho, porém, avalia que a “ousadia” do Estatuto do Trabalho como um todo pode tornar inviável sua aprovação, mas considerou a possibilidade de apreciação de um projeto menor para reverter a Reforma Trabalhista sem prejuízo da discussão do texto principal.
Martius Sávio Cavalcante Lobato, do Movimento Advocacia Trabalhista Independente (Mati), concordou com a tramitação paralela contra “aberrações” da lei do trabalho. Ele entende que a Reforma Trabalhista não tem pontos positivos, é destinada a proteger a elite e constitui “desconstrução” da dignidade humana.
“No Brasil é fácil cometer crime de lesa-humanidade. Não temos uma legislação que proteja os trabalhadores no meio ambiente de trabalho, que é uma espécie do meio ambiente, no qual ele precisa ser muito mais protegido”, comentou. “Vamos debater de forma coletiva, com toda a sociedade, uma nova legislação que vise a proteger a dignidade do trabalhador”, emendou.
Diretor de assuntos legislativos da Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Valter Souza Pugliese, também classificou a terceirização como um “fantasma” que paira sobre a classe trabalhadora e protestou contra entendimentos do Supremo Tribunal Federal (STF) que autorizaram a aplicação mais ampla desse instrumento.
“Todas as estatísticas que conhecemos identificam que o maior índice de acidentes de trabalho atinge empregados terceirizados”, explicou.
Pugliese também associou a Reforma Trabalhista ao esvaziamento da Justiça do Trabalho, que teria sido ratificada por decisão do próprio STF.
A “supremacia dos interesses privados” na legislação trabalhista sofreu críticas da desembargadora aposentada Magda Biavacshi: para ela, o Estatuto do Trabalho precisa integrar os direitos e garantias de todos os trabalhadores, independentemente dos serviços prestados e do regime de contrato. Ela criticou os artifícios para contratação de forma simulada e pediu atenção à alocação de trabalhadores através de plataformas digitais — circunstância ainda não prevista no texto-base do estatuto.
“[As denúncias de trabalho escravo] vêm à tona para mostrar àqueles que defendiam a terceirização que a terceirização é isso aí mesmo. As vinícolas vêm e dizem ‘não é culpa minha, a culpa é das terceirizadas'”, quando o sistema econômico e financeiro defendeu a terceirização.
Marco Aurélio Marsiglia Treviso, diretor de assuntos jurídicos da Anamatra, pontuou que a aprovação da Reforma Trabalhista se deu em apenas quatro meses, sem debate aprofundado. Ele espera que a ação legislativa contra os efeitos negativos da reforma seja mais efetiva que a contestação no Poder Judiciário: por exemplo, ainda não foi julgada pelo STF a inconstitucionalidade da limitação de indenização por danos morais para trabalhadores que “sofrem com a escravidão contemporânea”.
“Temos mais de cinco anos de vigência de uma reforma que limita apenas aos trabalhadores vítimas de prejuízos extrapatrimoniais as suas limitações. Não há a mesma limitação para a população comum”, lamentou.
Alex Myller Duarte Lima, representando o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, disse que o estatuto é uma oportunidade para olhar as relações de trabalho sob a ótica da Constituição, e — diferentemente do que se tem feito — não o contrário. Em sua visão, a Reforma Trabalhista é uma lei “pró-empregador” e uma “inflexão para o autoritarismo”, pois não abriu espaço de fato para a negociação entre trabalhadores e empregadores.
“Precisamos de uma legislação que proteja quem, naquele momento, é o hipossuficiente, e que, por ser hipossuficiente, tem menos direito de ser indenizado”, declarou.
Para Antonio de Oliveira Lima, diretor da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), a dificuldade de fiscalização, o acesso precário à Justiça e o esvaziamento dos sindicatos prejudicam a defesa do que “sobrou” dos direitos trabalhistas, e as recentes denúncias de trabalho escravo revelam apenas uma parte do problema.
“Precisamos pensar como construir políticas públicas para efetividade dos direitos sociais. Se temos hoje tantos trabalhadores ainda sem carteira assinada, a CLT ainda não aconteceu para muita gente”, disse.
Sary Yoko Ishii, especialista em direito do trabalho que participou do trabalho da sugestão legislativa, também pediu ampliação do acesso à Justiça do trabalho. A pesquisadora Paula Freitas espera a volta da discussão sobre a dignidade e a valorização do trabalho diante da “deterioração” das instituições e considerou ser necessário o reforço da ordem estatal contra a exploração dos trabalhadores. Também pesquisadora, Ludmila Abílio disse esperar um novo cenário para a contestação da “uberização” do trabalho e atacou a persistência das desigualdades raciais e de gênero no ambiente do trabalho. Por sua vez, a economista e professora Marilane Teixeira denunciou o elevado índice de trabalho “fraudulento” e declarou ser necessário mostrar à sociedade o que representa a terceirização da atividade-fim.
O texto do Estatuto do Trabalho deriva de grupo de trabalho que assessorou a subcomissão específica na CDH. Com mais de 700 artigos, o texto regulamenta assuntos relacionados a inclusão social, autorregulação sindical, modernização do trabalho, salário mínimo mensal e jornada de trabalho de 40h semanais. Com a volta à discussão do estatuto, a sugestão legislativa poderá ser aprovada na CDH, passando a tramitar como projeto normal.
Massacre de Unaí
Paulo Paim também anunciou a apresentação de projeto que inclui no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria os nomes das vítimas do Massacre de Unaí (MG): os auditores fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira, que foram assassinados em 28 de janeiro de 2004 durante uma fiscalização na zona rural. O crime, também chamado Chacina de Unaí, ganhou repercussão internacional e a data tornou-se Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.