O enredo repete aquele clichê de filme policial: no final, o bandido é sempre aquele que se fazia passar por mocinho. Mas no caso do escândalo das joias, o bolsonarismo supera até o melhor roteirista de Hollywood. A trama, exposta pelo STF com base em investigação detalhada conduzida pela Polícia Federal, com abundância de provas, envolve o então presidente da República, generais e coronéis do Exército, um advogado faz-tudo, leilão e venda de presentes milionários recebidos de países árabes, operação de resgate para recompra por valor mais alto e devolução ao erário público, como se nada tivesse acontecido.
“Clã Bolsonaro ou Trapalhões?”, reagiu, com espanto, o líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (ES), ao noticiário que sacudiu o meio político nesta sexta-feira (11/8). “Se apropriam de presentes oficiais, vendem para lucro próprio, recompram pagando mais do que receberam para tentar enganar autoridades, mas usam caneta bic para fingir simplicidade”, resumiu, para arrematar: “A lei do retorno não falha, meus amigos”.
Indignado, o senador Humberto Costa (PT-PE) considerou o episódio chocante. “Nunca foi um governo. Sempre foi um amontoado de trambiqueiros tentando a todo custo se dar bem. A prova disso é o chocante esquema ilegal de venda de joias do governo brasileiro para enriquecer bolsonaristas. Há provas substanciosas da operação criminosa. Uma verdadeira quadrilha se apossou do poder no governo Bolsonaro”, acusou.
Ele também considerou muito grave o uso de avião da FAB para contrabando. “Além de transportar cocaína, o avião presidencial no governo Bolsonaro serviu para levar ilegalmente para os Estados Unidos joias que pertenciam ao governo brasileiro”, registrou.
No rastro da quadrilha
O fio da meada veio a público no início de março de 2023, quando o jornal O Estado de S. Paulo noticiou que o ex-ministro bolsonarista Bento Albuquerque havia sido flagrado no final de 2021 na alfândega do Aeroporto Internacional de Guarulhos tentando entrar no país, sem o obrigatório trâmite legal, com joias e esculturas de alto valor presenteadas por governantes de países árabes ao então presidente Jair Bolsonaro.
A partir daí, diversos outros presentes milionários foram identificados, boa parte transferida, de forma ilegal e criminosa, do patrimônio da União para o patrimônio pessoal do presidente. As denúncias veiculadas nesta sexta dizem respeito a alguns desses presentes indevidamente apropriados por Bolsonaro e destinados à venda no mercado de joias dos Estados Unidos.
A PF fez uma análise minuciosa da troca de mensagens e cruzou metadados de localização por GPS dos integrantes do que os agentes consideram uma organização criminosa destinada a vender bens públicos para enriquecimento pessoal de Bolsonaro. O esquema envolve o faz-tudo de Bolsonaro, coronel Mauro Cid, seu pai e amigo de Bolsonaro Mauro Lourena Cid, o advogado de todas as horas Frederick Wasseff — o mesmo que escondeu em sua casa de Atibaia o operador do escândalo da rachadinha de Flávio Bolsonaro na Alerj — e outros assessores próximos do ex-presidente.
A seguir, alguns trechos reveladores do pedido de busca e apreensão contra Lourena Cid, Wasseff e Osmar Crivelatti, ajudante-de-ordens de Bolsonaro, assim como Mauro Cid. O documento foi divulgado nesta sexta pelo ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos que apuram atos antidemocráticos e fake news. O documento tem 105 páginas. O nome “Bolsonaro” está citado 93 vezes, em 53 páginas.
Página 23
Pai e filho conversam sobre a entrega de US$ 25 mil em espécie a Jair Bolsonaro e demonstram ciência do crime
“Na mensagem, MAURO CID aborda três assuntos, que estariam relacionados. O conteúdo do áudio revelou, inicialmente, que o General MAURO LOURENA CID estaria com 25 mil dólares, possivelmente pertencentes a JAIR BOLSONARO. Na mensagem, MAURO CID deixa evidenciado o receio de utilizar o sistema bancário formal para repassar o dinheiro ao ex-Presidente e então sugere entregar os recursos em espécie, por meio de seu pai, diz: ‘Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que, que era melhor fazer com esse dinheiro levar em ‘cash’ aí. Meu pai estava querendo inclusive ir ai falar com o presidente (…) E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas também pode depositar na conta (…). Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor ne? (…)’. Em seguida, MAURO CID esclarece sobre a tentativa de venda das esculturas douradas (barco e árvore), que, conforme já exposto, seriam presentes entregues por autoridades estrangeiras, ao ex-Presidente da República Jair Bolsonaro, quando de sua visita oficial no Oriente Médio, diz: ‘(…) aquelas duas peças que eu trouxe do Brasil: aquele navio e aquela árvore; elas não são de ouro. Elas têm partes de ouro, mas não são todas de ouro (…) Então eu não estou conseguindo vender. Tem um cara aqui que pediu para dar uma olhada mais detalhada para ver o quanto pode ofertar (…) eu preciso deixar a peça lá (…) pra ele poder dar o orçamento. Então eu vou fazer isso, vou deixar a peça com ele hoje (…)’.
Página 28
PF aponta que presentes foram levadas aos Estados Unidos no avião presidencial e só não foram vendidos porque, nesse caso, eram esculturas de baixo valor de mercado.
“Como se vê, as investigações apontam que as esculturas foram evadidas do Brasil para os Estados Unidos da América, em uma mala transportada no avião presidencial, no dia 30/12/2022 e que MAURO CESAR BARBOSA CID, em unidade de desígnios com seu pai, MAURO CESAR LOURENA CID e com os assessores do então Presidente OSMAR CRIVELATTI e MARCELO CAMARA, remeteu os bens para lojas especializadas, com objetivo de avaliá-los e vendê-los, para posterior incorporação do valor arrecadado ao patrimônio pessoal do então Presidente JAIR MESSIAS BOLSONARO, o que não se concretizou, tão somente, em razão do baixo valor patrimonial das esculturas.
Página 35
A investigação aponta para outros presentes desviados, inclusive pela ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.
“As mensagens revelam que, apesar das restrições, possivelmente, outros presentes recebidos pelo ex-Presidente JAIR BOLSONARO podem ter sido desviados e vendidos sem respeitar as restrições legais, ressaltando inclusive que ‘sumiu um que foi com a DONA MICHELLE’. Em resposta, MAURO CID diz: ‘(…) Eu já mandei voltar o, eu já mandei voltar!’, se referindo ao ‘KIT DE OURO ROSE’ da empresa Chopard, que foi colocado à venda em leilão, por meio da empresa Fortuna Auction, localizada na cidade de Nova York, na data de 08 de fevereiro de 2023.”
Página 37
Trecho revela escárnio da quadrilha e ciência das ilegalidades cometidas.
“Em seguida, MARCELO CÂMARA envia uma mensagem de áudio para MAURO CID explicando o que MARCELO DA SILVA VIEIRA relatou sobre a venda, no exterior, de bens destinados ao acervo privado do ex-Presidente JAIR BOLSONARO, ressaltando a necessidade de aviso prévio. MAURO CID aceita, mas ainda indaga: ‘Só dá pena pq estamos falando de 120 mil dólares / Hahaaahaahah’. MARCELO CAMARA concorda, mas diz: ‘O problema é depois justificar e para onde foi. De eu informar para a comissão da verdade. Rapidamente vai vazar’. As mensagens evidenciam que, além da existência de um esquema de peculato para desvia ao acervo privado do ex-Presidente da República, JAIR BOLSONARO, os presentes de alto valor recebidos de autoridades estrangeiras, para posterior venda e enriquecimento ilícito do ex-Presidente, MARCELO CAMARA e MAURO CID tinham plena ciência das restrições legais da venda dos bens no exterior.”
Página 40
PF e STF avaliam que Cid pai e Cid filho atuaram para desviar e vender bens públicos em benefício pessoal do ex-presidente.
“A resposta de MAURO CID ratifica o entendimento da existência de um esquema de venda dos bens de alto valor recebidos, em razão do cargo, pelo ex-Presidente da República e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, desviados do acervo público brasileiro, e ainda confirma a atuação de LOURENA CID, pai de MAURO CID, como o responsável por receber, em nome e em benefício de JAIR MESSIAS BOLSONARO, os recursos decorrentes da venda dos bens desviados.”
Página 45
Quando a PF descobriu que um dos presentes, o “Kit Rosê”, foi oferecido em leilão online por uma empresa dos Estados Unidos.
“A equipe policial realizou novas diligências e encontrou, a partir de pesquisa realizada na internet a partir de palavras-chave relacionadas ao denominado “KIT ROSÊ”, um site de leilões (https://www.liveauctioneers.com/item/145344488_chopard-men-s-setluc-tourbillon-fairmined-in-18k-rose-gold), onde é possível acessar a página que exibia uma fotografia do kit de joias, com informações adicionais, incluído o valor esperado de arrecadação US$ 120.000,00 (cento e vinte mil dólares).
Além disso, constatou a Polícia Federal que ‘o número de série do relógio anunciado no site https://www.liveauctioneers.com é o mesmo número registrado no acervo privado do ex-Presidente da República JAIR BOLSONARO, recebido em 29 de novembro de 2022, por meio do processo SEI 08500.018470/2023-03‘, concluindo, assim, que o conjunto de joias recebido pelo então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, após viagem à Arábia Saudita, em outubro de 2021, foi submetido à venda, mediante leilão nos Estados Unidos da América.”
Página 50
O faz-tudo de Bolsonaro conectou o celular ao wi-fi da loja de compra e venda de jóias usadas da Flórida (EUA).
“Além disso, pesquisa realizada no conteúdo do aparelho celular de MAURO CID, a partir do nome do estabelecimento comercial ‘PRECISION WATCHES’, identificou que foi realizada conexão em uma rede Wi-Fi cujo nome disponível ao usuário (SSId) é Precision_Guest. A conexão foi realizada às 15h48Z do dia 13 de junho de 2022. Ou seja, cerca de 1h25min após o deslocamento aparentemente iniciado por meio da utilização do aplicativo Waze.”
Página 56
“Os elementos de prova colhidos apontam que MAURO CID, após se desligar da comitiva presidencial no dia 13 de junho de 2022, viajou de Miami até a cidade de Willow Grove, no estado Pensilvânia/EUA. Na cidade se dirigiu até a sede da loja PRECISION WATCHES e efetivou a venda do relógio ROLEX DAY-DATE, que integrava o denominado “KIT OURO BRANCO”, presenteado ao ex- Presidente da República JAIR BOLSONARO, quando de sua visita oficial à Arábia Saudita em outubro de 2019. Após efetivar a venda do referido relógio, juntamente com o relógio da marca PATEK PHILIPPE, o montante de US$ 68.000,00 foi depositado, no mesmo dia, na conta bancária de MAURO CESAR LOURENA CID, pai de MAURO CESAR BARBOSA CID”.
Página 58
A Operação Resgate criada a partir da decisão do TCU para que Bolsonaro devolvesse as jóias à União.
“Após a divulgação de matérias jornalísticas relatando o recebimento de kits de joias por integrantes do governo brasileiro em nome do ex-Presidente JAIR MESSIAS BOLSONARO, oferecidos por autoridades estrangeiras, a investigação identificou que os envolvidos estruturaram uma verdadeira operação para resgatar os bens, que estavam em estabelecimentos comerciais nos Estados Unidos, para retornarem ao Brasil e serem devolvidos ao governo brasileiro, tudo para cumprir uma decisão exarada pelo Tribunal de Contas da União.
Página 59
Mensagens apagadas por Mauro Cid foram encaminhadas a uma segunda conta dele mesmo.
Embora as mensagens tenham sido apagadas, MAURO CÉSAR BARBOSA CID as enviou para o seu próprio WhatsApp Business, de modo que foi possível à Polícia Federal identificar que as mensagens continham fotos do kit de joias, contendo um anel, abotoaduras, um rosário islâmico (“masbaha”) e os respectivos certificados de autenticidade, que foi entregue ao ex-Presidente da República JAIR MESSIAS BOLSONARO, quando de sua visita oficial à Arábia Saudita em outubro de 2019
Página 67
Reportagem é usada pelos envolvidos para demonstrar o temor de que o esquema viesse à tona.
“Já no dia 10 de março de 2023, novamente demonstrando preocupação com a divulgação de presentes recebidos pelo então Presidente da República, JAIR BOLSONARO, MARCELO CAMARA encaminha para MAURO CID o link de uma reportagem publicada pelo portal METRÓPOLES, relatando que o ex-Presidente da República trouxe em um avião da Força Aérea Brasileira um fuzil que ganhou do príncipe árabe. Em seguida, MARCELO CAMARA diz: ‘Vai chamar a atenção para o presente de 2019’, possivelmente se referindo ao Kit de joias, denominado “KIT OURO BRANCO”, recebido por JAIR BOLSONARO quando de sua visita oficial à Arábia Saudita em outubro de 2019. Em resposta, MAURO CID diz: ‘Foda’.
Página 73
PF rastreia saque de US$ 35 mil nos Estados Unidos no dia em que Mauro Cid resgatou relógio, recomprado por valor maior.
“Cabe contextualizar que o referido endereço encaminhado pelo contato “Lucas” é o local onde se situa uma das agências do banco BB AMÉRICAS, instituição financeira em que MAURO CID, seu pai MAURO LOURENA CID e o ex- Presidente da República JAIR BOLSONARO possuem/possuíam conta bancária. Nessa mesma conjuntura, no material apreendido na casa de MAURO CID em Brasília, foi encontrado um segundo comprovante de saque “Withdrawal Transaction Demand Deposit” (Transação de Retirada Depósito à Vista) no valor de USD 35,000.00 (35 mil dólares) realizado às 11:26:54 (às 12:26:54 horário de Brasília) da conta com final 9584, exatamente na agência localizada no endereço supramencionado. O referido contexto demonstra que MAURO CESAR CID sacou o referido valor quando de sua viagem ao Estados Unidos no dia 27/03/2023.
Página 79
PF desvenda articulação para repatriar peças e enganar autoridades policiais.
“Cabe salientar que toda a operação foi realizada de forma escamoteada, fato que permitiu os investigados devolverem os bens sem revelar que todo o material estava fora do país, ao contrário das afirmações prestadas, inclusive em procedimento criminal instaurado para apurar a possível entrada irregular das joias que integravam o denominado KIT ROSE, em que afirmaram que todo o acervo do ex-Presidente JAIR BOLSONARO estava armazenado na localidade denominada ‘Fazenda Piquet’, no Distrito Federal.
Página 85
Mauro Cid encaminha mensagens sobre os relógios apropriados ao contato “Pr Bolsonaro Ago/21”
“As fotografias encontradas indicam que MAURO CÉSAR BARBOSA CID tinha armazenado dados do referido relógio na nuvem relacionada ao seu e-mail pessoal, inclusive informações quanto ao valor do modelo (US$ 51.665,00). Há ainda registro de que a imagem contendo os dados foi encaminhada ao telefone 556182919606, associado ao contato cadastrado como “Pr Bolsonaro Ago/21”, na data de 16/11/2021. Na referida ocasião, MAURO CÉSAR BARBOSA CID viajava com a comitiva do então Presidente da República, JAIR BOLSONARO, e se encontrava na cidade de Manama, capital do Bahrein. Na análise dos dados telemáticos de MAURO CÉSAR BARBOSA CID foi encontrada, ainda, uma fotografia do certificado do relógio Patek Philippe (indicando que foi vendido pelo estabelecimento Bahrain Jewellery Centre W.L.L) e um print do envio do certificado ao contato “Pr Bolsonaro Ago/21”.
Página 87
Investigação descobre que um dos presentes nem sequer foi catalogado pela Presidência.
“Quanto ao relógio PATEK PHILIPPE, os indícios colhidos na investigação apontam que o referido bem sequer foi submetido à catalogação pelo Gabinete Adjunto de Documentação Histórica – GADH e teria sido desviado, de forma direta, ao patrimônio do ex-Presidente da República JAIR MESSIAS BOLSONARO. Desse modo, o referido relógio, foi efetivamente alienado nos Estados Unidos, por meio da Loja PRECISION WATCHES, pelo valor de US$ 68.000,00 (sessenta e oito mil dólares), depositados em conta bancária de MAURO CESAR LOURENA CID.
Página 91
Documento aponta que destinatário final da venda de presentes era Bolsonaro.
“Os recursos, então, seriam encaminhados em espécie para JAIR MESSIAS BOLSONARO, evitando, de forma deliberada, não passar pelos mecanismos de controle e pelo sistema financeiro formal, possivelmente para evitar o rastreamento pelas autoridades competentes, conforme informado pela Polícia Federal. A investigação identificou, portanto, até o momento, que esse modus operandi foi utilizado para retirar do país pelo menos quatro conjuntos de bens recebidos pelo ex-Presidente da República em viagens internacionais, na condição de chefe de Estado, abaixo descritos (…)”
Página 96
Uso do Estado brasileiro para se apossar de bens e gerar enriquecimento
“Conforme o quadro fático exposto no transcorrer da presente representação há fortes indícios de que os investigados utilizaram a estrutura do Estado brasileiro para desviar de bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras ao Presidente da República ou agentes públicos a seu serviço, e posterior ocultação da origem, localização e propriedade dos valores provenientes, com o intuito de gerar o enriquecimento ilícito do ex-Presidente da República JAIR BOLSONARO.”
Página 97
Governo Bolsonaro criou estrutura criminosa para fazer muito dinheiro
”Os elementos de prova colhidos demonstraram que na gestão do ex-Presidente JAIR MESSIAS BOLSONARO, foi criada uma estrutura para desviar os bens de alto valor presenteados por autoridades estrangeiras ao ex-Presidente da República, para serem posteriormente evadidos do Brasil, por meio de aeronaves da Força Aérea brasileira e vendidos nos Estados Unidos, fatos que, além de ilícitos criminais, demonstram total desprezo pelo patrimônio histórico brasileiro e desrespeito ao Estado estrangeiro.”