O Código Penal Brasileiro, que já tem mais de 80 anos, prevê punição a quem explora a escravidão moderna. Entram aqui crimes como impedir o ir e vir da trabalhadora e do trabalhador, a servidão por dívida, as condições degradantes e a jornada exaustiva. Outros países têm seus marcos jurídicos para combater essa chaga, que é mundial. E que persiste, ano após ano.
Um relatório-resumo de 2021, divulgado nesta segunda-feira (12) pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima em 50 milhões o número de pessoas no mundo vítimas de condições de trabalho análogas à escravidão. No continente americano, diz a OIT, a escravidão moderna fez 5 milhões de vítimas no ano passado.
Mais de 85% dos casos de escravidão moderna estão no setor privado, com incidência maior na construção civil e na agricultura. O estudo também aponta que de 2016 para cá houve aumento expressivo dessas ocorrências, o que foi ainda mais agravado pela pandemia, que, sabe-se, ampliou a miséria e aprofundou a exploração.
Crianças, mulheres e imigrantes estão entre os alvos prediletos do crime. Os pequenos são uma em cada oito vítimas. Já as mulheres são as principais vítimas do casamento forçado, situação que explodiu nos últimos anos. A OIT registrou 6,6 milhões de novos casos em 2021, mas, ela própria admite no documento, é grande a subnotificação.
Outro grupo preferencial desse tipo de crime é o de imigrantes. Segundo a OIT, a pessoa que foge de um país para outro – muitas vezes da guerra e da miséria – acaba tendo três vezes mais chance de cair no trabalho forçado.
No Brasil, lembra o senador Paulo Paim (PT-RS), há ainda o registro de maioria negra entre as vítimas. “É assustador. Um cenário cruel, de total ataque e desrespeito aos direitos humanos. O Brasil, infelizmente, está inserido neste cenário de degradação. Os vulneráveis, os pobres e a população negra são os mais atingidos. Há denúncias de pessoas trabalhando em cativeiro, presas, acorrentadas, maltratadas, passando fome e sede”, aponta Paim.
O diretor-geral da OIT, Guy Ryder, que se despede do cargo nesse mês para dar lugar a Gilbert Houngbo, do Togo, também se disse chocado com os números e lamentou que o cenário ainda piorou nos últimos anos.
Brasil, antes e depois
De acordo com o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil (Radar SIT), o país fechou 2021 com 1.959 trabalhadoras e trabalhadores resgatados da escravidão moderna. Foi o maior resgate desde 2013. O que poderia ser algo a comemorar esconde, na verdade, o aumento desses casos, avaliam especialistas.
Mas houve um tempo em que esse assunto era tratado com prioridade no país. Em março de 2003, o Brasil assistiu ao lançamento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Além de medidas interministeriais adotadas a partir dali, o pais ouviu uma promessa: “nenhum fiscal, policial federal ou agente a serviço do Estado será cerceado milimetricamente na sua liberdade de fazer a fiscalização que tem que ser feita”. Foi o que afirmou, na ocasião, o então presidente Lula, em referência ao combate a esse crime, no meio rural e nas cidades. Já na época, mais de 75% das ocorrências de trabalho análogo à escravidão ocorriam no campo.
De lá para cá, modificações no Código Penal clarearam a tipificação desse crime. Uma dessas mudanças foi proposta pelo hoje líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PA), para punir a exploração do trabalho infantil. Também é de Paulo Rocha a autoria de emenda constitucional que permite confiscar a terra de empregador que utilizar trabalho análogo à escravidão em sua propriedade.
“Fui autor da lei que criminaliza esse absurdo e, como sabemos, nos últimos anos chegaram a quase parar esse tipo de fiscalização. Em 2023, temos uma excelente perspectiva que as ações contra o trabalho escravo sejam novamente retomadas com força” – projetou o senador, que acredita na derrota do atual governo nas eleições.
Estrutura de fiscalização
De fato, só mudando o governo. Porque, no caminho oposto, Bolsonaro tentou inclusive suprimir da Constituição a emenda de autoria de Paulo Rocha. Como não conseguiu, também não regulamentou esse dispositivo constitucional, que ainda depende de lei complementar que defina o trabalho análogo à escravidão.
Além disso, as estruturas de Estado voltadas à fiscalização sofreram um baque nos últimos anos. Para se ter uma ideia, o último concurso público para auditor fiscal do trabalho ocorreu em 2013, no governo Dilma Rousseff, e hoje a carência é de cerca de 1.500 profissionais na área.
Senador e testemunha do desmonte dos órgãos de fiscalização, Paulo Rocha avalia que o atual governo só é aliado do mau empresário. E lamenta o crescimento de casos de escravidão moderna.
“É um absurdo que ainda hoje milhões de pessoas sejam vítimas da ganância, sendo forçadas a trabalhar sem receber a devida remuneração. Mesmo no Brasil, ainda temos milhares de pessoas para serem resgatadas de situação degradante”.
Na opinião do colega Paulo Paim, o desmonte da fiscalização provocado pelo atual governo dialoga com outras políticas de precarização do trabalho, e que devem ser revistas no próximo governo.
“Políticas públicas de combate ao trabalho escravo e de fiscalização, que foram alcançadas ao longo dos anos, estão sendo desmontadas, numa forma vil e desumana. A própria desregulamentação dos direitos trabalhistas e sociais, direitos constitucionais, a uberização, o trabalho intermitente, são também formas de escravidão moderna. Tudo isso é inaceitável. O atual governo se omite. Que possamos mudar este cenário de vergonha e de indignidade”, pregou o senador.