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Especialistas apontam que, além de criminalizar o usuário, há inconstitucionalidade na PEC das Drogas

Na véspera da votação em primeiro turno, especialistas alertam para os riscos de abordar o tema apenas sob a perspectiva da repressão e da criminalização

Alessandro Dantas

Especialistas apontam que, além de criminalizar o usuário, há inconstitucionalidade na PEC das Drogas

Sessão de debates foi presidida pelo senador Jaques Wagner

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC 45/2023) foi duramente criticada por especialistas ouvidos nesta segunda-feira (15/4) durante sessão de debates realizada no plenário do Senado. Para eles, além de não resolver questões relacionadas ao consumo de drogas no país, a proposta ainda é inconstitucional, por inserir uma restrição no artigo 5º da Constituição Federal que trata justamente de direitos e garantias fundamentais. 

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“O artigo 5º traz direitos inegociáveis duramente conquistados após a ditadura. O direito à liberdade, o direito à vida. Não é nesse artigo que se insere uma reprimenda, uma restrição. É flagrantemente inconstitucional inserir no artigo 5º a criminalização do usuário [de drogas]”, destacou Silvia Souza, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). 

Silvia Souza apontou para a inconstitucionalidade da proposta em análise no Senado. Foto: Alessandro Dantas

Conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Marcelo Leonardo também apontou a inconstitucionalidade do que chamou de “PEC do Usuário.  

Além disso, o representante do IDDD lembrou do julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) que tem apontado para a inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha para consumo próprio de acordo com a previsão do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). 

A legislação em vigor prevê sanções alternativas – como medidas educativas, advertência e prestação de serviços – para a compra, porte, transporte ou guarda de drogas para consumo pessoal. Mas não deixa claros os parâmetros para definir quem seria considerado usuário e quem seria considerado traficante.  

“Se o STF está entendendo por maioria que o artigo 28 [da Lei de Drogas] viola um artigo constitucional, vai dizer que o inciso 80 viola o mesmo dispositivo constitucional”, alertou Marcelo Leonardo. 

De acordo com a PEC 45, será acrescido na Constituição o inciso 80 ao artigo 5º para prever que “a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. 

“Estamos deixando em aberto para que agentes públicos aumentem seu poder discricionário sobre a vida de indivíduos e sobre as liberdades individuais. E isso é muito grave”, alertou o senador Rogério Carvalho (PT-SE). 

Ausência de parâmetros para diferenciar usuário de traficante preocupa o senador Rogério Carvalho. Foto: Alessandro Dantas

O senador Jaques Wagner (PT-BA) afirmou que o simples fato de se propor uma alteração no artigo 5º da Constituição Federal, justamente o que estabelece direitos e garantias fundamentais, é justificativa suficiente para o Congresso Nacional dar uma atenção especial para a proposta.  

“A discussão de criminalização das drogas é complexa devida a sua relação com questões profundamente enraizadas na sociedade como saúde pública, direitos individuais e políticas de segurança. A abordagem simplista de criminalização muitas vezes não considera as raízes do problema, podendo perpetuar um ciclo de violência e marginalização”, apontou Wagner. 

Brasil deveria focar na redução de danos 

A médica psiquiatra e pesquisadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica da Universidade de São Paulo (USP) Camila Magalhães Silveira contou que trata usuários de drogas e seus familiares há mais de 25 anos e pesquisa os impactos da dependência nas vidas dessas pessoas. Ela posicionou-se contrária à aprovação da PEC 45/2023, disse que um mundo sem drogas é impossível e que são variadas as motivações que levam uma pessoa a usar drogas lícitas ou ilícitas. 

“Eu discordo veementemente da criminalização da posse e do porte de drogas para uso pessoal. A questão do uso de drogas é um problema multifatorial, portanto é inconveniente que o sistema criminal seja utilizado como principal componente da política de drogas”, disse. 

A especialista ainda destacou publicação da revista The Lancet, de novembro do ano passado, que reiterou evidências esmagadoras de que a criminalização falhou.  

“Abordagens punitivistas são ineficazes e prejudiciais. Décadas de criminalização não só falharam em desincentivar o consumo de drogas, como impulsionaram as epidemias globais de HIV e hepatite, além de diminuir a procura de tratamento por medo da discriminação e do estigma”, relatou Camila. 

“É melhor focarmos na diminuição dos riscos a acreditarmos que a criminalização protegeria o usuário de drogas”, emendou a médica psiquiatra.    

Representante regional para o escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Jan Jarab apontou que a proposta em discussão no Senado vai em direção contrária aos debates, decisões e recomendações feitas em âmbito internacional, sobretudo, na ONU.     

“O uso desproporcional de penalidades criminais desencoraja as pessoas que usam drogas a buscar tratamento, alimenta o estigma e a exclusão social”, enfatizou.   

Criminalização pode prejudicar uso terapêutico 

O químico industrial Ubiracir Lima, coordenador do Grupo de Trabalho Cannabis do Conselho Federal de Química (CFQ), ressaltou o potencial de uso terapêutico de produtos derivados de plantas de cannabis, inclusive variedades com baixo teor de THC, o princípio entorpecente da maconha.  

Ubiracir disse, ainda, que essas plantas podem ter uso industrial e alimentício, por exemplo. Ele defendeu que o Brasil pesquise e se desenvolva nessa área, que pode ser muito lucrativa e gerar emprego e renda. 

“Estigmatizar pode inibir essas pesquisas e inibir o crescimento industrial”, alertou.

Senador Jaques Wagner teme prejuízos aos estudos sobre o uso terapêutico de substâncias como o canabidiol. Foto: Alessandro Dantas

O senador Jaques Wagner também alertou para a possibilidade de a criminalização prevista na proposta interferir no uso terapêutico de substâncias comprovadamente eficazes para o tratamento de doenças, como o caso do canabidiol.  

“A criminalização pode dificultar estudos sobre o uso medicinal, devido à restrição de acesso, barreiras regulatórias, escassez de financiamento e limitação da pesquisa pré-clínica, representando um obstáculo significativo para o desenvolvimento de tratamentos medicinais baseados nessa substância”, apontou Wagner. 

Descriminalização não representa aumento no consumo de drogas 

A professora e membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) Andrea Galassi relatou aos parlamentares a experiência vivenciada em Portugal, que, em 2001, adotou uma política de descriminalização do consumo de drogas e a polícia deixou de prender usuários com pequenas quantidades de entorpecentes. Essa norma veio acompanhada por programas de prevenção ao vício e de redução de danos, como a substituição de heroína por metadona. 

Andrea Galassi relatou a abordagem de Portugal no enfrentamento às drogas. Foto: Alessandro Dantas

Andrea ainda relatou os senadores os resultados de um estudo realizado em Portugal entre 2001 e 2012, o qual aponta que a descriminalização do consumo de entorpecentes não fez com que o consumo aumentasse no país, e também não promoveu a queda dos preços dessas substâncias. Além disso, também foi verificada uma queda na taxa de infecção por HIV com a adoção dessa política.  

“A criminalização afasta as pessoas que usam drogas dos sistemas de saúde e de assistência social”, destacou a especialista. 

Tramitação 

Está prevista para a amanhã (15/4) a votação da PEC 45/2023 no plenário do Senado. Caso seja aprovada, a proposta ainda será analisada novamente, em segundo turno.  

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