“O que chamou a atenção do FMI é que nossa política de inclusão social é barata e sustentável. Reduzimos em 82% a população considerada em situação de subalimentação em menos de 12 anos, mas a imprensa brasileira não divulga essas conquistas”Antes da entrevista com a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, no final de tarde da quinta-feira (28), mais uma visita de autoridade internacional aparecia em seu gabinete – a presidente da Câmara dos Deputados da Itália, Laura Boldrini, que, assim como os outros, buscava mais informações sobre o Bolsa Família. No caso da parlamentar italiana, jornalista de ex-porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o objetivo do encontro foi colher subsídios para a a definição de um programa de combate à pobreza que o governo italiano vai anunciar em breve.
Assim tem sido quase todas as semanas. Autoridades estrangeiras querem saber mais sobre como o Brasil trabalhou – investindo apenas 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) – para sair do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU).
Christine Lagarde, principal executiva do Fundo Monetário Internacional (FMI), foi uma dessas visitantes. Em sua visita ao Brasil, na semana anterior, pediu mais do que informações: queria ver pessoalmente os resultados da política de inclusão social desenvolvida e implantada pelos governos do PT. Convidada pela ministra para visitar o Complexo do Alemão, que agrega diversas favelas da zona norte do Rio de Janeiro, traduziu depois suas impressões como “um privilégio” por ter visto pessoalmente um exemplo dos “avanços sociais notáveis”, conforme escreveu em sua página do FMI.
Nesta entrevista aos jornalistas do site da Liderança do PT no Senado, Alceu Nader e Rafael Noronha, a ministra Tereza Campello fala não só dessas visitas ilustres, mas também dos mitos e preconceitos que cercam o Bolsa Família, das dificuldades iniciais para sua implantação e do interesse repentino e rápido esquecimento do candidato derrotado à Presidência da República, senador Aécio Neves PSDB-MG), pelo programa de distribuição de renda, antes e depois das eleições do ano passado, além de soluções que sua pasta está procurando adotar para driblar o corte de gastos determinado pelo ajuste fiscal
Liderança do PT no Senado – A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, FAO, divulgou nesta quarta-feira (28) novo documento apontando que, entre 2002 e 2014, o Brasil foi o que mais reduziu a fome entre os países mais populosos do mundo. Os principais jornais brasileiros não trouxeram uma linha sequer sobre essa conquista. A que a senhora atribui esse silêncio?
Tereza Campello – Infelizmente, não foi apenas essa informação não divulgada. O relatório anual da FAO de 2014, de setembro do ano passado, que revelou que o Brasil não mais fazia parte do mapa da fome, trouxe um quadro de destaque específico sobre a nossa capacidade de, num curto espaço de tempo, criar um ambiente de segurança alimentar a ser seguido por outros países. Reduzimos em 82% a população considerada em situação de subalimentação em menos de 12 anos, mas a imprensa brasileira não divulga essas conquistas. Há pouco, recebi a visita da presidenta da Câmara dos Deputados da Itália, Laura Boldrini, que já trabalhou na FAO, e a primeira coisa que ela me falou foi que o Brasil é uma inspiração e que nossa trajetória é surpreendente. A fome deixou de ser de fato um flagelo no país – e isso deveria ser motivo de orgulho, pois o Brasil não só acabou com a fome. Tornou-se um exemplo para outros países. Então, o silêncio imposto às boas notícias é realmente incompreensível.
O que levou a FAO a reconhecer o avanço brasileiro?
A FAO aponta três motivos para o Brasil ter saído do mapa da fome. O primeiro é a quantidade de calorias disponíveis de um país. O Brasil, ao contrário de países da África, sempre foi um grande produtor de alimentos. Mesmo assim, existia a fome – e tínhamos fome por não haver acesso à comida. Foi isso que nós conseguimos viabilizar como país. O segundo motivo é o acesso à renda que, no nosso caso, não se dá unicamente por meio do Bolsa Família, mas principalmente pelo aumento real de 72% do salário mínimo nos últimos treze anos, em primeiro lugar. E, em segundo, pela geração de 20 milhões de empregos em 12 anos. Não podemos nos esquecer de que foi no governo da presidenta Dilma que o Brasil quebrou recorde na oferta de emprego. O terceiro motivo, ainda segundo a FAO, é o acesso à alimentação por outras vias. O destaque brasileiro, em comparação aos países mais populosos do mundo, é a merenda escolar. São 43 milhões de crianças que comem, pelo menos uma vez por dia, na escola. Isso é quase a população da Argentina, que tem 47 milhões de habitantes. O resultado final das políticas adotadas é que 60% das pessoas saem da pobreza por meio de sua inserção na economia, contra 40% dos que ainda dependem dos programas de transferência de renda e outras ações do Estado.
A senhora acompanhou a visita de Christine Lagarde ao Complexo do Alemão. Pode nos descrever que impressões ela teve da visita?
Durante a maior parte do tempo, o que ela mais comentou foi que experiência no Brasil é, hoje, um exemplo de impacto positivo provocado por programas sociais atuando em rede. Nosso país é um exemplo de sucesso, ela comentou, porque transformou sua agenda social em uma agenda que também é econômica. Nossa política de inclusão como um todo é sustentável – e é isso que chama a atenção de outros países. Ela disse ainda que dois pontos chamam a atenção no Brasil. Um deles é ter construído sua agenda social de forma federativa, articulada entre União, Estados e Municípios, o que a torna mais sustentável. O outro é termos conseguido fazer funcionar com sucesso programas de uma abrangência enorme a um preço muito baixo, como é o caso do Bolsa Família, que abrange 50 milhões de pessoas e custa apenas 0,5% do PIB. Esses formam os pontos que ela espontaneamente tratou com a imprensa, até que uma jornalista perguntou sobre o ajuste.
E que acabou sendo destacado nos jornais sobre dificuldades e obrigações impostas pelo ajuste fiscal…
Hoje, Christine Lagarde escreveu sobre a sua experiência no Alemão no Facebook, e publicou um artigo no site do FMI, onde ela descreve os avanços sociais notáveis que o Brasil conseguiu na última década, ressaltando que o que chamou muito sua atenção foi a importância que o Brasil dá à inclusão produtiva das mulheres nas ações sociais. Na visita, ela conheceu mulheres que se formalizaram como empreendedoras, valorizando esse aspecto, coisa que a inclusão social produz no Brasil, porque ela não se dá apenas por meio de um benefício de renda, que é outro ponto que a imprensa, em geral, infelizmente não destaca.
“O Bolsa Família tem 14 milhões de famílias registradas, algo em torno de 50 milhões de pessoas, com cerca de 90 mil alterações diárias no cadastro. Ao dar dinheiro vivo para o beneficiário, produz, como primeiro resultado, um custo baixíssimo para o contribuinte. Essa é uma das razões de o Bolsa Família receber elogios do FMI. Ele é barato e reconhece no pobre capacidade e discernimento para gastar o dinheiro que recebe”Não só não destaca, como continua desqualificando o Bolsa Família, chamando-o de assistencialismo eleitoral, e colaborando com o preconceito de que muita gente recebe o bolsa família sem precisar…
Que é uma imagem totalmente equivocada, porque o programa é um complemento de renda. Os números comprovam: ao contrário do que muita gente pensa, porque é mal informada, o valor médio pago por família pelo Bolsa Família é de 170 reais por mês. Ninguém vai deixar de trabalhar e ganhar um salário mínimo, para não trabalhar e receber 170 reais por mês, que é o quanto custa, em média, os 14 milhões de famílias que recebem o beneficio. Foi criado no imaginário de que há gente ganhando 1.500 reais por mês, que é mais do que o maior valor distribuído hoje pelo programa, para uma família com 18 pessoas.
Quais os principais mitos e preconceitos que ainda cercam o Bolsa Família? Que números desmentem esses mitos e preconceitos?
Existem três mitos que se repetem incessantemente. O primeiro é esse, o de que as pessoas são pobres porque não querem trabalhar, quando, na verdade, os pobres no Brasil são pobres porque não tiveram oportunidade. Ou porque são de uma família em que ninguém estudou, que não teve acesso à informação, ao crédito, entre outras barreiras visíveis e invisíveis que impedem as pessoas, mesmo as que trabalham, de conquistar um padrão de vida um pouco mais digno. Esse preconceito também se manifesta nos Estados Unidos. A pessoa é pobre porque é um loser (perdedor) ou um lazy (preguiçoso). A verdade é que, no Brasil, ao perdedor, àquele que ganha pouco, não foram dadas condições iguais para competir em pé de igualdade com os demais grupos da sociedade. Não dá para pôr no mesmo patamar quem teve condições de estudar, quem recebeu boa alimentação na infância, com aqueles que, adultos hoje, foram crianças famintas e não estudaram. Não dá para comparar, são réguas diferentes.
O segundo mito…
O segundo mito, que eu acho o mais injusto de todos, é que, no meio de 14 milhões de famílias, há um caso que todo mundo cita como de conhecimento próprio, que dizem que as mulheres do Bolsa Família têm mais filhos para poder ganhar mais dinheiro. Além de ser um mito, muito do preconceituoso, parte do princípio de que o pobre é relativamente burro. Eu pergunto: quem vai querer um filho para ganhar entre 35 e 70 reais a mais por mês? Só se essa pessoa não tem a menor ideia de quanto custa uma criar uma criança, de quanto custa um litro de leite, além de toda a dedicação, do amor, do esforço e do trabalho que é cuidar de uma criança. É um preconceito que nasce da falta de bom senso. Há um juízo moral cruel por trás desse preconceito. Quer dizer, que se o pobre aceita ter um filho por tão pouco dinheiro, certamente a pessoa que está dizendo isso deve ter algum preço também. Não é questão de se perguntar por quantos milhões você aceita para ter um filho, considerando apenas o dinheiro e se esquecendo filho é resultado de um afeto. É o mesmo que pensar que uma pessoa pobre, para ter moral, não pode ter filho. Esse preconceito é terrível, porque, no fundo, diz que o pobre é feito de outro barro, diferente do meu.
Que números ou indicadores mostram que isso é um mito?
A prova mais evidente de que não passa de uma grande bobagem está na taxa natalidade do Brasil entre 2002 e 2013. Enquanto a média nacional caiu em 10,7%, nesse mesmo período essa mesma média caiu 15,7% entre os 20% mais pobres. Entre os 20% mais pobres da região Nordeste, que é onde recai o maior preconceito, a natalidade caiu 26,4%. Quer dizer, não existe base estatística para que se continue repetindo essa barbaridade. Mas muitos, inclusive no Congresso, continuam repetindo isso por puro deleite, por preconceito mesmo, perpetuando uma visão que não ajuda em nada o País.
Essa queda da natalidade indica maior acesso à instrução?
Nós a explicamos pela maior escolaridade das mães, que não é da mesma geração em que os mais pobres também eram analfabetos. Estamos falando de mães jovens, com instrução, ainda que mínima. O analfabetismo e a falta de acesso à educação no Brasil se concentram, hoje, nos adultos com mais de 50 anos. Os jovens não são mais analfabetos. Aumentou muito a escolaridade média do Brasil. Principalmente entre os mais pobres.
Está faltando o terceiro mito…
O terceiro é o de que não dá para entregar dinheiro na mão das pessoas pobres, porque elas vão gastar mal. Dizem: em vez de dar o dinheiro, dá uma cesta, um vale. Vai dar dinheiro na mão do pobre? Não pode, porque pobre gasta mal.
Há como substituir dinheiro por outro tipo de auxílio?
Sim, existem dois modelos disponíveis para substituir a transferência em dinheiro, mas nenhum deles funciona. No modelo dos EUA. em que a pessoa recebe um vale que ela só pode comprar comida, acaba-se criando uma rede de corrupção gigantesca com o comércio ilegal desses vales. E não é sempre porque está havendo algum tipo de desvio, mas porque a pessoa está precisando de outra coisa que não seja arroz e feijão. Ela está precisando de sabonete, mas o vale não permite. Por que ela não pode comprar sabonete? Além disso, para garantir que o vale só vai ser gasto em comida, seria preciso criar e manter uma rede gigantesca de fiscais federais para controlar os gastos das pessoas pobres, o que encareceria – e muito – o programa. O Bolsa Família, ao dar dinheiro vivo para o beneficiário, produz como primeiro resultado um custo baixíssimo para o contribuinte – e esse é uma das razões de o Bolsa Família receber elogios do FMI. Ele é barato para o Estado, porque foi montado a partir de um modelo muito simples, que reconhece no pobre a capacidade e o discernimento para gastar o dinheiro que recebe.
Outro sistema é a distribuição de cestas básicas, que tem um histórico de corrupção bastante conhecido no Brasil, além de ser um caríssimo por causa da logística envolvida, sem contar o desvio de alimentos.
O Bolsa Família, ao contrário, transformou-se em uma rede gigantesca, custando 0,5% do PIB, sempre é bom lembrar, passando o dinheiro pelo sistema financeiro diretamente do governo federal para a mão da pessoa, eliminando qualquer tipo de atravessador. Aliás, tem outra informação importante, que muita gente desconhece: todo cidadão que recebe dinheiro do governo pelo Bolsa Família tem o nome registrado no Portal da Transparência. Se eu quiser saber se o meu vizinho recebe o Bolsa Família, mesmo tendo renda para não merecer o benefício, é só consultar o portal e colocar o nome da pessoa para descobrir se ela efetivamente recebe do Bolsa Família e quanto recebe. É essa transparência que nos dá capacidade de controle. Com vale ou cesta básica, esse nível de controle não existiria.
[Correção feita em 02/06:
O valor máximo por beneficiário pago pelo Bolsa Família é de 77 reais nos casos em que a família não tem nenhuma fonte de renda; os R$ 170 publicados como valor máximo antes da correção correspondem ao valor médio pago às família beneficiadas.]
Em que circunstâncias é pago o valor máximo de 77 reais por beneficiário do Bolsa Família?
Primeiro, é preciso esclarecer que esses 77 reais são pagos para aqueles que não têm nenhuma renda, zero, multiplicado pelo número de pessoas da família. Mas também é muito difícil encontrar renda zero entre todos os membros da família, porque, em geral, sempre há alguma pessoa produzindo alguma coisa. Os números globais mostram que, do total de 14 milhões de famílias beneficiadas, apenas 25 famílias recebem mais do que mil reais. Mais de 80% ganham menos de 500 reais. Ninguém vive do que ganha no Bolsa Família, que, como eu disse, sempre teve como objetivo ser um complemento de renda das famílias.
Como é feito o controle sobre quem recebe o benefício?
O controle também diferencia o Bolsa Família dos demais programas, porque ele traz milhões de pessoas para a lupa do Cadastro Único. São 14 milhões de famílias registradas, algo em torno de 50 milhões de pessoas, com cerca de 90 mil alterações diárias no cadastro. É uma criança registrada, alguém que foi a óbito ou mudou de endereço, coisas normais a qualquer família. Mas o mais importante do Cadastro Único é que as informações que ele reúne permite ao governo aproximar os beneficiários a outros programas como o Pronatec, como o incentivo ao empreendorismo individual, o Água Para Todos e todas as ações de governo que visam a inclusão produtiva dos beneficiados.
Existe risco de quebra deste elo do aumento da renda via trabalho com a garantia de renda via benefício social?
Como o Bolsa Família é um valor variável, se a família piorar de renda, o Bolsa Família vai aumentar um pouco. No curto prazo, como mostram os dados mais recentes, o que se tem é uma parcela enorme declarando que sua renda aumentou. Outra parcela passou a receber um valor menor, apesar de não ter melhorado a renda ao ponto de sair do programa, que é um ato voluntário das pessoas.
Com quais tendências o Ministério do Desenvolvimento Social trabalha para os próximos anos, em relação ao número de beneficiados?
Essa não é uma questão intrínseca ao programa. Nós localizamos, nos últimos quatro anos, em torno de 1,4 milhão de famílias que estavam fora do Cadastro Único e que tinham direito a entrar no programa. Mas, neste mesmo período, os gastos com o Bolsa Família não aumentaram na mesma proporção, porque tem muita gente saindo do programa. A tendência, então, é de trabalharmos com um total de gastos relativamente estabilizado.
“As famílias são livres para gastar em outras necessidades. Podem gastar, por exemplo, para consertar um telhado quebrado, porque está chovendo na cama das crianças. Qual o problema de usar o dinheiro do Bolsa Família para comprar telha?”A senhora acredita que, se o projeto do candidato derrotado à Presidência da República, Aécio Neves, fosse aprovado pelo Senado, esses números seriam os mesmos? O que significa para o programa adotar as regras que ele defende?
Parte das regras defendidas pelo senador tinha como argumento que estavam sendo criados mecanismos que defendiam as famílias, teoricamente supondo que as pessoas das famílias beneficiadas não procuravam emprego com medo de perder o benefício. Essa tese parte de uma visão bastante equivocada da realidade, de desconhecimento sobre o que é realmente o Bolsa Família. O que é importante perguntar é se as pessoas vão melhorar de emprego, ganhar mais e sair do programa. O que não foi compreendido é que o Bolsa Família não é sinônimo de esmola, mas sim de levar oportunidade, qualificação profissional e recursos para a pessoa melhorar de vida. Ao longo da história, três milhões de famílias saíram do programa. A ideia de que as pessoas se perpetuam no Bolsa Família não tem aderência com a realidade.
A senhora poderia explicar melhor essa última afirmação?
75% dos adultos do Bolsa Família trabalham. Logo, não é verdade que as pessoas não procuram trabalho com medo de perder o benefício. Todos os estudos mostram que os brasileiros que fazem parte das famílias do programa, trabalham tanto quanto os demais. O segundo grande equívoco do projeto apresentado – e que foi divulgado como uma ideia nova – é o de que os beneficiários precisariam de um tempo para ficar no Bolsa Família para, então, procurar emprego. Não há novidade alguma nisso, porque é assim que já ocorre. Portanto, não é preciso um projeto de lei para regulamentar algo que já existe. Teve certa trapalhada aí, porque ele (Aécio) falou que ia deixar as pessoas mais seis meses no programa. Como as pessoas podiam ficar dois anos com o projeto, logo se criou a ideia de que elas teriam menor prazo para receber o benefício, pois, ao invés de poder ficar dois anos no programa, poderiam ficar apenas seis meses. Percebida a trapalhada, eles reformularam a proposta, dizendo que as pessoas poderiam ficar de seis meses a dois anos no programa, sem ter nenhuma base científica para fixar esse período. Por que mais seis meses? Alguém reclamou que dois anos era pouco? Mas depois do período eleitoral, o interesse pelo programa desapareceu completamente.
Como as famílias beneficiadas gastam o que recebem do Bolsa Família?
Primeiro, todas as pesquisas feitas mostram que as famílias gastam bem esse dinheiro. Gastam principalmente com alimento, material escolar, material de higiene e remédios. Essa qualidade de gasto ocorre porque o cartão do programa vai para a mão da mãe. Mas as famílias são livres para gastar em outras necessidades. Podem gastar, por exemplo, para consertar um telhado quebrado, porque está chovendo na cama das crianças. Qual o problema de usar o dinheiro do Bolsa Família para comprar telha? Nossos filhos podem, de vez em quando, comer um chocolate. Filho de pobre não pode? Só pode comer arroz e feijão? Imagina o dano moral para uma criança que nunca vai ter acesso a nenhum prazer infantil. Qual o problema de se comprar um brinquedo? As famílias do programa têm o direito de fazer seu planejamento familiar, tomar decisões sobre como vai gastar seu dinheiro. Se errar, no mês seguinte corrige, assim como todos nós fazemos nas decisões com a nossa renda.
São Paulo foi o último estado a aderir ao Bolsa Família. Quais dificuldades foram acrescidas com a entrada no programa do estado mais populoso do Brasil? A capital de São Paulo representa parte significativa desse trabalho?
Tem um dado que pouca gente conhece. O estado com o maior número de pessoas no Bolsa Família é a Bahia, com 1,8 milhão de famílias. O segundo é São Paulo. É o segundo estado, em termos absolutos, com 1,4 milhão de famílias no programa. É renda que o governo federal transfere diretamente para o estado, dando ao cidadão em São Paulo o mesmo direito quanto um índio da Amazônia ou um cidadão no Nordeste.
Dentre as comunidades sem segurança alimentar garantida estão os povos quilombolas. Existe alguma estratégia específica para alcançar essas comunidades?
A estratégia do Bolsa Família permite que ele atue da mesma forma em todo o território nacional. Neste momento, nosso esforço é o de buscar de públicos que concentram não só a maior insegurança alimentar como os quilombolas e indígenas, como aqueles que exigem uma abordagem diferenciada. Você não pode, por exemplo, tratar a assistência técnica rural e achar que ela pode atender ao agricultor familiar, ao assentado, ao indígena e ao quilombola.
Como o MDS tem contornado essas dificuldades?
Estamos com várias ações. Uma delas é garantir o cadastramento específico de comunidades quilombolas, ribeirinhas, extrativistas, indígenas, ciganos, população de rua. Públicos que não só são muito vulneráveis do ponto de vista da segurança alimentar, mas que precisam da inclusão produtiva, precisam que as diversas políticas de desenvolvimento cheguem até eles. No caso de populações quilombolas e indígenas, fizemos chamadas de assistência técnica, contratamos assistência. Isso exige conhecimento prévio, porque não daria certo o governo oferecer ajuda propondo algo sem pé e sem cabeça para a cultura deles. Muitas vezes, por causa do isolamento em que se encontram, essas comunidades demandam estratégias bastante específicas. No Norte do Brasil, por exemplo, estamos com uma equipe volante, de lancha, para chegar em comunidades extrativistas e ribeirinhas.
A senhora escreveu, em artigo recente, que 3,1 milhões de pessoas deixaram o Bolsa Família, seja por terem superado a renda limite ou por não terem atualizado o Cadastro Único. O Cadastro Único é justamente o que o candidato derrotado à Presidência da República diz ser a prova de que o Bolsa Família é uma criação do PSDB…
O que se chamava de Cadastro Único em 2002 era apenas um decreto, porque, na verdade, não havia, de fato, nenhum único cadastro constituído. Havia pelo menos quatro cadastros distintos: o do Bolsa Escola, o da Bolsa Alimentação, o do Vale Gás…Havia uma proliferação de cadastros únicos, o que, em si, já mostra uma contradição, e, pior de tudo, cada um com informação diferente da do outro.
Era um cadastro único que não era único…
No caso do Vale Gás, se todos os membros da família quisessem se cadastrar, podiam. Também existiam graves problemas de informação cadastral. Exigia-se somente a matrícula na escola, mas não havia como saber se essa criança frequentava as aulas. Hoje, ao contrário, há um sistema de frequência acompanhado mensalmente pelo MEC.
Em linhas gerais, pode-se dizer que eram cadastros que não procuravam conhecer as famílias beneficiadas e, a partir daí, criar condições para se planejar como elas sairiam da pobreza. Tivemos de partido do zero, refazendo e eliminando a uma quantidade enorme de erros dos cadastros herdados. Sem isso, não teríamos um programa tão bem estruturado como temos hoje. É a partir do cadastro realmente único, que foi estruturado no primeiro ano do governo do presidente Lula, que conseguimos extrair dados que antes não eram visíveis para o estado poder se planejar, englobando desde informações gerais e setoriais, até as mais detalhadas.
“Nossas principais ações e serviços estão preservados. Para as ações que sofreram corte, estamos buscando rotas alternativas para não diminuir o serviço prestado. O Ministério da Defesa, que compra toneladas de comida para as tropas, por exemplo, já está comprando parte do que precisa da agricultura familiar”Por exemplo?
Por exemplo, trazer a informação para o governo e para o país que houve redução no déficit de altura, o principal indicador de desnutrição crônica, em mais de 50% das crianças cobertas pelo Bolsa Família. Essa informação só pôde ser obtida porque os agentes sociais do ministério medem e pesam as crianças periodicamente. Por conta da rede de coleta de informações que reúne mais de 20 ministérios e órgãos federais, sabemos se as crianças estão sendo bem alimentadas, da mesma forma que identificamos se aquele jovem adulto da família beneficiada está trabalhando ou se pode aprimorar seu trabalho num dos cursos do Pronatec-Brasil Sem Miséria. Já estão garantidas 763 mil vagas na rede do Pronatec para esses casos. Esse é mais um dado que comprova que o Bolsa Família não é apenas distribuição de dinheiro para quem precisa, mas um programa multidimensional que não avalia os problemas que as famílias enfrentam e, a partir desse o ponto, oferece uma série de serviços públicos, como energia elétrica ou abastecimento de água. São programas o Luz Para Todos ou o Água Para Todos, que instalou mais de um milhão de cisternas. De novo, graças ao Cadastro Único, hoje há a articulação de 22 programas de governo, em parceria com estados e municípios, com frequentes cruzamentos com outros bancos de dados, como os do CAGED (empregos), Banco Central, RAIS, Sebrae, entre outros, para depurar as informações o orientar as ações de governo.
O contingenciamento de recursos orçamentários atingiu em que medida o Ministério do Desenvolvimento Social?
Nossas principais ações e serviços à população estão preservados. Para as ações que sofreram corte, estamos buscando rotas alternativas para não diminuir o serviço prestado. Um exemplo, que já está em prática, envolver o programa de aquisição de alimentos, muito valorizado pelos pequenos agricultores, que é responsável pela compra de parte importante da produção da agricultura familiar no Brasil. Estamos tentando ampliar as compras desses produtores pelo estado, assim como já é feito junto a esses mesmos agricultores para abastecer a merenda escolar. O cafezinho que nós estamos servindo aqui no ministério, por exemplo, é orgânico e comprado da agricultura familiar.
Além do MDS, alguma outra pasta compra alimentos da agricultura familiar?
O Ministério da Defesa, que compra toneladas de comida para as tropas militares, já está comprando parte do que precisa da agricultura familiar, numa ação que vai nos ajudar bastante a compensar o corte de recursos. Em todas as soluções que buscamos, está a possibilidade do poder de compra do Estado ajudar para que eles tenham inserção melhor no mercado, sem usar diretamente o orçamento do MDS. Estamos servindo de facilitador nesses processos.
Fotos: Alessandro Dantas
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