Às 5h30min da madrugada do dia 22 de janeiro deste ano, 2 mil policiais militares, 220 viaturas, 100 cavalos, 40 cães e dois helicópteros tomaram de assalto a comunidade de Pinheirinho, em São José dos Campos (SP). Ignorando uma liminar da Justiça Federal, o efetivo cumpria uma ordem de desapropriação do Tribunal de Justiça de São Paulo, que mandou expulsar os mais de 5 mil moradores do terreno pertencente ao mega investidor Naji Nahas.
Neste domingo (22), o que talvez tenha sido a mais truculenta ação de despejo da história recente do país completou seis meses. E o saldo desse período é tão desolador quanto o próprio acontecimento. Uma comunidade que antes era unida agora está espalhada. Uma comunidade onde antes quase todos tinham emprego e renda, hoje está desempregada ou subempregada. Numa comunidade onde antes havia vida, hoje há apenas entulho, restos carcomidos de casas, de móveis, de animais mortos e de histórias.
Após serem expulsos de suas casas, os moradores de Pinheirinho permaneceram até dois meses em galpões cedidos pela prefeitura de São José dos Campos. Com medo de deixar o local e perder um quadrante ou um colchonete, muitas pessoas deixaram de comparecer aos seus trabalhos e não encontraram nos patrões nenhuma sensibilidade à situação precária em que viviam.
Após esse turbulento período de transição – em que os adultos tiveram que cuidar dos idosos e das crianças amontoados nos abrigos –, o que poderia significar ajuda e um relativo conforto se tornou mais uma dificuldade na diáspora do Pinheirinho. Os R$ 500 fornecidos na forma de bolsa-aluguel às famílias não se demonstraram suficientes para os preços elevados de São José dos Campos, onde uma casa de dois dormitórios com 60 m² dificilmente sai por menos de R$ 550.
Na prática, até três famílias precisam se reunir para conseguir alugar uma residência na cidade e muitas outras foram para municípios vizinhos, onde o aluguel é mais barato. Sem falar nas cerca de 40 famílias que foram realocadas pela própria prefeitura de São José dos Campos no loteamento Rio Comprido, área parcialmente desativada por se situar em região de risco, onde deslizamentos de terra já fizeram vítimas fatais no passado.
Resistência persiste e chega aos organismos internacionais
Enquanto os moradores de Pinheirinho ainda tentam equilibrar suas vidas entre a tragédia de uma expulsão traumática e a necessidade de seguir em frente, lideranças políticas, autoridades públicas e movimentos sociais buscam alternativas para reparar os danos causados a mais de cinco mil vidas. Durante esses seis meses, a ação policial repercutiu de forma negativa na imprensa internacional e mobilizou uma enxurrada de ações judiciais contra o Estado de São Paulo.
O defensor público paulista Jairo de Souza, que acompanha a situação de Pinheirinho desde 2008 e negociava a regularização da área junto à prefeitura de São José dos Campos, já ajuizou mais de 800 ações de indenização por danos morais e patrimoniais em nome dos moradores. Em entrevista ao Sul21 em junho deste ano, o advogado explicou que o recurso à Justiça pretende reparar o prejuízo financeiro e o sofrimento emocional que a desapropriação causou à população da comunidade. “Pessoas perderam o emprego, consultas médicas ou o próprio rendimento familiar. Alguns tinham formas de renda dentro da própria comunidade. E também estamos pedindo danos morais sobre as humilhações. Tem crianças que não podem ver um helicóptero hoje que começam a chorar”, relatou o defensor público. A média das indenizações exigidas fica em torno de R$ 20 mil por ação.
Além da atuação em âmbito estadual, o caso de Pinheirinho pode ir parar nos tribunais internacionais. Um grupo de juristas formado por nomes como Fábio Comparatto e Dalmo Dallari entregou um dossiê sobre o assunto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA). A comissão tem o poder de remeter a matéria para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que pode condenar o Estado de São Paulo por violações durante a desapropriação.
As denúncias também foram parar na mesa da corregedora-geral do Conselho Nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon, que garantiu que irá apurar eventuais irregularidades na atuação do Poder Judiciário de São Paulo na condução da ação. Como em setembro ela deixará o cargo, os advogados dos moradores acreditam que até lá Eliana terá uma posição sobre o tema.
As crianças querem Pinheirinho de volta
Talvez o elo mais sensível dessa tragédia sejam as crianças. Quem tem até oito anos de idade nunca morou em outro bairro, já que o terreno – desocupado há 30 anos – passou a ser habitado a partir de 2004.
Os pequenos não conseguem entender o que exatamente aconteceu para que fossem expulsos de suas casas. Os pais relatam que, após a desapropriação, seus filhos entram em pânico ao verem duas coisas: helicópteros e policiais militares.
O líder do Movimento Urbano dos Trabalhadores Sem Teto, Valdir Martins, está articulando negociações para garantir moradia digna aos ex-moradores do Pinheirinho junto aos governos municipal, estadual e federal. Em contato permanente com os atingidos, ele visita as famílias todas as semanas. “As crianças me veem e perguntam quando irão voltar para lá. Na cabeça delas, estão apenas de férias e um dia voltarão para Pinheirinho”, comenta.
Rose Aparecida Silva, de 43 anos, se comove ao falar sobre o neto de apenas seis anos de idade. “O que mais me dói é quando ele pega uma semente de fruta e fala que vai plantar no Pinheirinho. A esperança dele é voltar para lá, onde ele nasceu, brincava e tinha os amiguinhos. Agora ele está sozinho.”
Antes, ela vivia numa casa de quatro dormitórios com a família. O marido era ajudante de pedreiro e a filha mais velha morava ao lado. Hoje, as duas dividem o aluguel de uma casa. O marido de Rose perdeu o emprego por conta da expulsão e tenta ganhar dinheiro na reciclagem de lixo. “Éramos muito unidos no Pinheirinho. Sinto uma revolta muito grande, lá eu tinha minha casinha e até uma horta. Agora moro longe do meu pessoal, bate um desespero… A gente chegou no fundo do poço”, lamenta Rose.
A confeiteira Tanice Rosemere dos Santos, de 44 anos, tinha uma vida boa no Pinheirinho. Vivia do dinheiro que tirava com os bolos e doces que fazia na própria casa. E desfrutava do forte vínculo que a comunidade proporcionada. “Os vizinhos eram como parte da família. Vivíamos realmente em comunidade. Nos finais de semana todos se reuniam. Hoje, parece que essa família toda se perdeu”, recorda.
Seis meses após ser expulsa do bairro, ela já se mudou quatro vezes de casa e relata que, assim como muitos outros, sofre preconceito por ter vindo do Pinheirinho. “Quando digo que sou de lá, não querem mais alugar (o imóvel)”, lamenta.
Atualmente, Tanice vive com o filho mais novo, de apenas um ano de idade, no loteamento Rio Comprido, que abriga outras 40 famílias originárias do Pinheirinho – todas realocadas pela prefeitura de São José dos Campos. O problema é que ela pode sair dali a qualquer momento, já que a área estava desabitada por conta do risco de deslizamentos de terra.
Resignada, ela procurará abrigo na casa de um genro. Por hora, Tanice está feliz por ter tido uma sorte diferente da de muitos dos ex-moradores do Pinheirinho: conseguiu um emprego. Os tratores do Estado passaram por cima de sua casa e demoliram junto os móveis, o forno e as formas que a ex-doceira utilizada para trabalhar. Hoje ela trabalha como auxiliar de serviços gerais na MRV Engenharia, empresa que constrói e vende condomínios de luxo no Brasil inteiro. Inclusive em São José dos Campos.
Samir Oliveira – http://sul21.com.br