Na mídia: médicos se recusam a atender na periferia e no interior

Revista Carta Capital mostra que, embora pagando salários atraentes e mesmo com hospitais bem-aparelhados, não há médicos nos rincões.

Bons salários e até postos de saúde e hospitais bem-equipados. É verdade que essa realidade não é uma unanimidade entre os municípios mais distantes do Brasil, mas, mesmo onde isso existe, os médicos não aceitam trabalhar. A matéria de capa da Carta Capital desta semana demonstra que por mais que as autoridades de alguns municípios se empenhem, a população continua desassistida e os postos de saúde, vazios. Em muitos, há apenas enfermeiros.

Algumas prefeituras se sujeitam a fechar os olhos para as exigências que são obrigatórias em grandes centros: jornada de trabalho por exemplo. Acabam aceitando pagar salários de período integral para médicos que atendem dois dias por semana. É isso ou nada. A esperança dos prefeitos e da população é que o programa Mais Médicos mude esse cenário.

Veja a íntegra da matéria:

 

A Saúde não chega aqui

 Quando, no meio da noite, um ho­mem bateu à porta do posto de saúde de Sítio do Quinto, município baiano a cerca de 400 quilômetros de Salvador, a técnica de enfermagem Maria Elba Felício Sales tremeu. O homem vinha com uma faca atravessada no pes­coço. Em pânico, ela pressionou com for­ça o ferimento, mas o sangue continua­va a vazar. Além dela, só o vigia ainda es­tava no posto. “Gritei para ele me acudir, mas o homem estava desmaiado. Valei-me, Deus, pedi ajuda na rua. Um técnico de en­fermagem me acudiu. Mas num teve jei­to não”, relembra, enquanto atende uma idosa petrificada com a história.

Nem mes­mo as duas moscas pousadas na testa in­comodam a paciente.

 

Três anos após o episódio funesto, a saúde pública piorou na pequena cida­de de 12.592 habitantes e chão de paralelepípedos cobertos por lama seca. Naquela noite, não havia um plantonis­ta no posto. Atualmente, exceto às quintas e sextas, quando um doutor aparece em Sítio do Quinto, é impossível encon­trar um médico. A população conta ape­nas com enfermeiros.

 

As casas de fachada simples que avan­çam sobre ruas inclinadas e sem calçadas refletem a pobreza local onde a renda mé­dia domiciliar per capita é de apenas 219 reais. No meio do Semiárido baiano. Sítio do Quinto tem poucos atrativos e muitas necessidades. A exemplo de diversas cida­des de perfil semelhante, integra a lista de municípios prioritários do programa Mais Médicos do Ministério da Saúde, lançado em julho para diminuir o déficit de pro­fissionais no interior e nas periferias das grandes cidades do País.

 

Na quarta-feira 14, o governo federal anunciou a seleção de 1.618 médicos, entre eles 358 estrangeiros, no primeiro mês do programa. O número representa 10,5% da demanda total: 15.460 profissionais para 3.511 municípios. Sítio do Quinto precisa de cinco desses médicos, embora nenhum deles tenha se inscrito para trabalhar na cidade, que mantinha quatro profissio­nais até meses atrás. A prefeitura per­deu os médicos para Salvador e uma ci­dade vizinha. O último deles partiu sem aviso prévio no início do ano. “Quem pa­ga mais. leva. Só consegui encontrar um médico que trabalha duas vezes por semana”, desabafa Delina de Jesus Santos, se­cretária de Saúde da cidade. “Os médicos não cumprem a carga horária de 40 ho­ras semanais. Se a gente obrigar, aí fica­mos sem nada mesmo.”

 

Em uma cidade que deve seis meses de salários aos fun­cionários não concursados, é quase impossível encon­trar em seu gabinete o pre­feito Cleigivaldo Carvalho Santarosa, do PDT. Segundo rumores, deve a agio­tas. Ainda assim, a prefeitura se dispôs a bancar um salário de 10,5 mil reais líqui­dos para manter UM médico na cidade. Em Ribeiro do Pombal, a 80 quilômetros de distância, o salário é menor, 8 mil reais líquidos, mas o município abriga o hospi­tal regional, que atende os casos mais gra­ves de 20 cidades da região. Possui UTI, especialistas e salas cirúrgicas.

 

No posto de saúde de Sítio do Quinto, a situação é inversa. Além de não haver médicos, o único enfermeiro deixou o cargo e ainda não foi substituído. O balcão da re­cepção não pode ser utilizado por abrigar entulhos de uma pequena reforma. A po­pulação recebe ali apenas curativos, vaci­nas, medem a pressão e a glicose. Os consultórios vazios expõem as falhas estrutu­rais nas paredes, enquanto a sala de des­carte de materiais hospitalares, como agulhas e luvas usadas, acumula uma pilha de caixas desses itens, e serve de moradia a morcegos. O mato alto e a terra vermelha cercam o posto, onde nem sequer há ba nheiros em funcionamento.

 

Do lado de fora, nas proximidades do muro azul e branco desbotado do pos­to, ficam os motoristas das duas am­bulâncias da cidade. Eles aguardam pacientes encaminhados pelos técnicos em enfermagem para hospitais em cida­des vizinhas, como Ribeiro do Pombal e Jeremoabo ou, em casos mais graves, Aracaju e Salvador. “Quatro pacientes já morreram comigo no caminho de três horas até Aracaju. Duas delas por falta de oxigênio na ambulância”, afirma Josias Almeida Barros, um dos motoristas.

 

A falta de médicos levou a cidade a perder a verba fe­deral para três dos quatro postos do Programa Saúde Família, que usa equi­pes multiprofissionais em unidades bási­cas para acompanhar moradores de uma região com ações de prevenção e contro­le de doenças comuns. Para funcionar, as unidades precisam de um médico. O plantonista de dois dias é ligado ao pro­grama, mas faltam medicamentos e a infiltração no prédio inutilizou a sala onde há uma mesa ginecológica para o pré-natal. “O médico não consegue visitar as fa­mílias rurais, fica preso no consultório”, diz Luana Camila Costa Nascimento, úni­ca enfermeira da unidade.

 

Na comunidade de Farofa, a distância dificulta ainda mais o acesso dos profis­sionais de saúde. A estrada até o prédio de um dos PSFs da cidade é estreita, si­nuosa e precária. Em uma casa pequena, sem piso adequado, forro no teto ou água no banheiro, o enfermeiro Guilherme Silveira trabalha há um ano.

 

 Em um dos cômodos da casa, um grupo de mulheres assiste a aulas sobre saú­de feminina. Na sala ao lado, Silveira atende uma paciente que reclama de tosse. Receita um dos poucos medicamentos autorizados a prescrever por um protoco­lo do Conselho Federal de Enfermagem. “Desde março, nunca ví um médico aqui.”

 

Em Novo Triunfo, o prefeito João Batista de Santana, também do PDT, anda com quatro seguranças. Teme ser assassi­nado, como ocorreu com seu irmão, então prefeito da cidade, que tem um único mé­dico, disponível por dois dias e meio. Quem tem problemas quando o doutor não está no município nem passa pelo posto de saú­de. Caso de Antonio José de Oliveira, de 79 anos, que quebrou o fêmur ao levar um tombo na roça.

 

Após a queda, Oliveira viu-se obrigado a viajar para Ribeiro do Pombal em bus­ca de tratamento. Mas o médico não iden­tificou a fratura. O problema se agravou e a perna do agricultor perdeu mobilida­de. “Passei três meses olhando para o te­to sem dormir direito de tanta dor.” Uma a das filhas conseguiu vaga em um hospital cm Camaçari, distante 300 quilômetros de sua terra, e Oliveira enfrentou um a ci­rurgia de emergência. Magro e franzino, ele se esforça para levantar se do sofá e caminhar com o auxílio de um andador pela sala iluminada por um fraco feixe de luz. “Os médicos disseram que nunca vi­ram um velho tão forte como eu.”

 

Novo Triunfo também está na lis­ta de cidades prioritárias do programa Mais Médicos. Tem quatro unidades de saúde, segundo a prefeitura, equipadas com o que o Ministério da Saúde considera essencial. Falta, contudo, um mé­dico em um povoado rural de 2 mil ha­bitantes, “Pedimos cinco médicos e recebemos um apenas”, lamenta Edvânio Ciriaco dos Santos, enfermeiro e coorde­nador de atenção básica de saúde.

 

O médico enviado pelo programa federal é Eduardo Ribeiro. Recém-formado em Teresópolis, no Rio de Janeiro, ele nasceu na região e pretendia retornar. “Tinha em mente que até en­trar na residência, ficaria na atenção bá­sica.” O jovem faz plantões em Salvador para completar a renda e adquirir expe­riência em casos mais complexos.

 

Com a escassez profissional, a cidade de 15.051 habitantes segue o caminho de Sítio do Quinto e empurra seus doen­tes a outros municípios. “Gasta-se muito com o transporte para outras cidades, são cerca de 90 mil reais por mês, entre carros e combustível”, lista José Mário Varjão, secretário de Administração.

 

Um dos destinos mais comuns é Ribeiro do Pombal. Na porta do hospital regio­nal, Maria dos Santos, de 67 anos, sente fortes dores por causa de pedras na vesícula. Chegou de outra cidade no fim da manhã e assiste ao sol se esconder estendida na calçada. De lenço no cabelo e mão na barriga, re­clama: “Devia ter ficado em casa. Vi três médicos e ninguém me disse nada. Estou com fome”. A fila na emergência é longa. São mais de 150 pacientes por dia.

O hospital recebe doentes de ao me­nos 20 municípios, para casos de maior complexidade que exigem exames como tomografia ou UTI e especialistas. São 5 mil pacientes por mês, 20% habitantes de outras cidades. A equipe de30 médi­cos está completa, mas não há margem para imprevistos. “Quando o médico fal­ta de emergência não temos como subs­tituí-lo”, diz Jorge Ribeiro, diretor-interino do hospital.

 

Esse é um cenário comum em qual­quer cidade com atenção básica, garante o médico Lázaro Viera de Menezes, de 28 anos. Sentado em um consultório sim­ples em Duas Serras, cercado apenas por uma mesa e uma maca, o recém-forma­do relata que os médicos tentam cum­prir a jornada, mas precisam completar a renda. “Para sobreviver, temos de assu­mir plantões ao menos no fim de sema­na, que é bem mais rentável.” *

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