Com a atual política ambiental, o Brasil não conseguirá cumprir compromissos assumidos em conferências mundiais do clima, como na COP 26, no ano passado, na Escócia. Não só isso. O país piora ano a ano no cuidado com áreas florestais públicas: as árvores são derrubadas e as terras vão parar nas mãos da grilagem e do crime organizado, em esquemas de fraude e corrupção. E, como confirmaram especialistas na Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado, parte desse descaminho é projeto de governo.
A audiência desta terça-feira (13) é a primeira de um ciclo de debates provocado por requerimentos de senadores, entre eles Fabiano Contarato (PT-ES), que presidiu a reunião. O objetivo é avaliar os impactos ambientais gerados pela ocupação ilegal de áreas públicas, principalmente na Amazônia Legal, em 2021.
Visto de cima, é mais fácil entender o tamanho do drama. É o que fazem os satélites usados pelo programa MapBiomas, um consórcio de universidades, organizações não governamentais e startups de energia. Conforme o relatório de 2021, apresentado na audiência pelo coordenador geral do programa, Tasso Azevedo, o desmatamento cresceu em todos os biomas no Brasil. Foram 16.557km² desmatados no ano passado, um aumento de 20% na comparação com 2020. Sob a gana de Bolsonaro, o Brasil já perdeu 42 mil kms² de florestas desde janeiro de 2019, praticamente a área do estado do Rio de Janeiro. No caso da Amazônia, tivemos em 2021 a maior taxa de desmatamento nos últimos 15 anos.
Na maioria dos casos, o desmatamento é ilegal, confirma o estudioso. E 75% desses crimes poderiam ser punidos. Como? Tasso Azevedo explicou que o MapBiomas faz cruzamentos com vários cadastros e mapas de outros órgãos, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e o Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e, assim, consegue identificar os responsáveis. Na avaliação de Tasso, a resposta para o avanço do crime, praticado principalmente em nome da expansão do mau agronegócio sobre a floresta, é a impunidade. Mau porque, segundo ele, os desmatadores são a minoria, já que 98% das propriedades no Brasil não tiveram desmatamento nos últimos 3 anos.
Ciclo da grilagem
Caso o governo quisesse, há mais ferramentas para identificar e punir desmatadores. Sabe-se que 76% da área desmatada no ano passado está dentro de propriedades com registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR). E não são tantos assim. Estamos falando de cerca de 60 mil propriedades, que é menos de 1% do total cadastrado, detalha Tasso Azevedo, e 19% desses proprietários ou posseiros são reincidentes. Do outro lado da cerca, 98% dos imóveis com CAR vêm cumprindo a lei, ressalta o especialista.
Mas outros dados indicam que o governo não tem interesse de manter a lei e a floresta em pé. A pesquisadora sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Brenda Brito, afirma que políticas estaduais na Amazônia Legal e, notadamente, a política do governo federal são de incentivo à grilagem.
Uma das leis federais foi a (Lei nº 13.465/2017) que mudou o regramento do setor (Lei nº 11.952/2009), criado no governo Lula exatamente para dar um basta à ocupação ilegal dessas terras e combater a devastação ambiental na Amazônia Legal. A nova regra, criada um ano após o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, ampliou as hipóteses de regularização e o marco temporal da anistia para quem invadiu terras públicas.
“A falta de data-limite é um dos problemas. Porque muitos grileiros continuam invadindo terras públicas. É o que gente chama de ciclo de grilagem e desmatamento, que começa com a grilagem de terras públicas, depois com o pedido de regularização, e em seguida por meio da pressão para que se mudem as leis, com lobby no Congresso e no Executivo”, explica Brenda.
Como exemplo, ela cita dois projetos governistas, atualmente no Senado, que fazem exatamente isso. Travestidos sob ementas de “regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União”, os projetos de lei 510/2020 e 2633/2020 propõem a ampliação do marco temporal (do Código Florestal) para legalizar invasões de grileiros, o aumento das áreas de terras nas quais não será necessário fazer vistoria do Incra para serem regularizadas, e a precarização da fiscalização ambiental e fundiária, além e outros retrocessos legais.
Florestas não destinadas
O que não falta, a partir de Bolsonaro, são políticas de destruição da Amazônia. Brenda Brito cita o caso das Terras Públicas Não Destinadas, que, pela Constituição, não podem ser concedidas nem tituladas a proprietários privados. No atual governo, destaca a pesquisadora, 69% dessas florestas já estão sob ameaça de privatização, em razão de destinação para a regularização fundiária.
Em vez de indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, ou mesmo unidades de conservação, grileiros podem virar donos dessas terras. É o que prevê a política de Bolsonaro, que chegou a mudar regra de funcionamento da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras. Por decreto, o atual mandatário passou a permitir que a Câmara destine essas terras para a expansão agrícola, por exemplo, sempre que não houver manifestação do Instituto Chico Mendes de Conservação Ambiental (ICMBio), que, claro, foi aparelhado pelo Planalto.
“Inaceitável ter um parágrafo que estabelece que diante da omissão dos órgãos, presume-se não haver objeção. Isso inverte a lógica. É mais um dos projetos de retrocesso na pauta ambiental, contra o qual vamos lutar”, garantiu Fabiano Contarato após a denúncia da pesquisadora do Imazon.
Brenda Brito também defendeu que normas e leis sejam mais duras contra desmatadores. Ela reclama que atualmente a legislação não proíbe a titulação de terras desmatadas ilegalmente e sequer exige o compromisso de recuperação das áreas desmatadas antes de se fazer a titulação. “Nem mesmo as obrigações socioambientais pós titulação são monitoradas pelo poder público”, acrescentou.
Ao concordar com a exposição de Brenda Brito, o gerente da Transparência Internacional no Brasil, Renato Morgado, anunciou uma série de recomendações para reduzir a grilagem e outros crimes conexos, que vão da fraude no CAR até a corrupção nos registros de imóveis, e também para fortalecer os órgãos de gestão fundiária. Ou seja, tudo na contramão do que pratica e estimula o atual governo.
Reflexo no comércio
Diante de representantes de povos indígenas, especialmente das etnias Kanela, Gamela, Macuxi e Cariri, o professor Rodrigo Bellezoni falou da sobreposição de CAR em territórios indígenas, problema que aumenta no Brasil e que além de provocar a devastação de florestas e rios, alimenta conflitos fundiários.
Rodrigo estuda o assunto há anos pelo Centro de Inteligência Territorial da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o que resultou na criação do Selo Verde, uma certificação que pesa a sustentabilidade da produção e monitora a propriedade privada, apontando, por exemplo, onde há sobreposição a terras indígenas.
Para obter o selo verde, cada vez mais importante no comércio internacional, é preciso, claro, seguir as regras do Código Florestal, como a reserva legal de mata próxima a córregos e rios, assim como buscar a produção sustentável. Não é o que acontece com muitas das terras na Amazônia Legal, informou o pesquisador, dando razão aos demais expositores.
Apenas uma fazenda no Pará, estado líder em desmatamento, tem 81% de sua área sobreposta ao Território Indígena Cachoeira Seca. Além disso, o fazendeiro não resguardou a reserva legal, desmatou fora do prazo tolerado pelo Código Florestal e contamina rios. De novo, sem qualquer punição ou interferência do governo federal.
COP 27
Como afirmado no início, a atual gestão do meio ambiente no Brasil contraindica qualquer otimismo com relação ao cumprimento de metas climáticas. Munido das informações da audiência na CMA, Fabiano Contarato se encaminhou ao plenário do Senado para presidir outra audiência, também provocada por requerimento de sua autoria. O tema era a preparação do Brasil para a próxima Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), que ocorrerá em novembro no Egito.
Novamente, muitas críticas ao governo, feitas por cientistas, pesquisadores e ativistas que cobraram compromisso efetivo com as metas assumidas pelo Brasil junto a ONU. Tal como aconteceu na CMA, o desmonte da governança de meio ambiente foi severamente criticado pelos debatedores.
Para Contarato, o Brasil regride nessa área, e fica cada vez mais longe de cumprir sua NDC, sigla em inglês para contribuição nacional determinada, assumida no ano passado, na Escócia, durante a COP 26.
“O ataque que este governo faz à pauta ambiental é sistemático. Acaba com a Secretaria de Mudanças Climáticas, com o plano de combate ao desmatamento, com o Departamento de Educação Ambiental. Criminaliza ONGs, reduz a participação da sociedade civil, prolifera a autorização de agrotóxicos, quer autorizar a extração de minério em terra indígena, arma grileiros e enfraquece órgãos de fiscalização”, resumiu o senador.