Diante do iminente término da vigência do atual Fundeb, os trabalhadores em educação e estudantes brasileiros desencadearam uma vigorosa mobilização social em defesa de um novo Fundeb, capaz de responder minimamente aos desafios do Brasil na área da educação, da creche ao ensino médio, passando pela educação do campo, educação indígena e quilombola, educação de jovens e adultos, educação profissional e educação especial: um universo que abrange aproximadamente 40 milhões de estudantes e 4 milhões de trabalhadores em educação, além de 139 mil escolas públicas.
A mobilização foi e continua sendo tão vigorosa que superou as barreiras derivadas da pandemia de Covid-19 e atingiu os mais diversos recantos do Brasil, por meio de lives, seminários virtuais, artigos, notas de entidades e movimentos sociais, atos simbólicos, campanhas nas redes sociais e muita articulação política. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) desempenharam um papel fundamental na mobilização social, construindo o ambiente político necessário para que a oposição, através de uma atuação igualmente aguerrida na Câmara dos Deputados, pudesse derrotar as ameaças do governo Bolsonaro e aprovar o novo Fundeb.
As ameaças do governo Bolsonaro ao financiamento da educação básica pública foram e continuam sendo inúmeras. Não podemos esquecer que o ministro Paulo Guedes, por meio do Plano Mais Brasil, tenta implementar a chamada agenda 3D – desindexação, desvinculação e desobrigação do orçamento -, o que significa eliminar o arcabouço constitucional a partir do qual o constituinte vislumbrou a materialização dos direitos sociais. Como o Fundeb é uma subvinculação da vinculação constitucional, a implementação da agenda 3D significaria não apenas o fim do Fundeb, mas também a supressão da vinculação inscrita no art. 212 da Constituição Federal.
Também não podemos esquecer que o governo Bolsonaro, por não ter nenhum compromisso com a educação pública, ausentou-se deliberadamente de todo o processo de discussão e formulação do novo Fundeb e teve a ousadia de, à véspera da votação na Câmara dos Deputados, apresentar uma proposta absurda, que sequestrava os recursos da educação pública para a educação privada e para o Programa Renda Brasil, que o governo pretende colocar no lugar do Programa Bolsa Família para poder chamar de seu.
Mas a mobilização social já tinha conquistado o Brasil, e até mesmo variadas frações da direita compreenderam o ônus político de se posicionar ao lado do governo Bolsonaro e contra a educação básica pública, especialmente em um ano de eleições municipais, de modo que a relatora da matéria, a deputada federal Dorinha Seabra (DEM/TO), apesar de ter inscrito algumas concessões na última versão do substitutivo levado a voto, teve segurança para enfrentar a pressão do governo e apresentar um texto que nos permite avançar no financiamento da educação básica pública, na redução das desigualdades educacionais e na valorização dos profissionais da educação.
O substitutivo aprovado na Câmara dos Deputados do último dia 21 de julho, em uma sessão que entrará para a história da educação brasileira, além de inserir o Fundeb no corpo permanente da Constituição Federal, eleva gradativamente a complementação da União dos atuais 10% do total dos recursos aplicados por Estados e Municípios em manutenção e desenvolvimento do ensino via Fundeb, para 23%, sendo 10% distribuídos pelo modelo do atual Fundeb, que contempla especialmente estados das regiões Norte e Nordeste; 10,5% distribuídos com base no Valor Aluno Ano Total (VAAT), que leva em consideração todos os recursos dos Estados e Municípios vinculados à educação, inclusive os recursos que não são vinculados via Fundeb, de modo a permitir que municípios com baixa arrecadação localizados em estados com elevada arrecadação sejam beneficiados pela complementação da União; e 2,5% com base em critérios meritocráticos, conforme regulamentação no plano infraconstitucional. Ademais, 50% dos 10,5% distribuídos com base no VAAT foram vinculados à educação infantil, de modo que possamos reduzir o nosso déficit no acesso à creche, uma vez que 65% das crianças de 0 a 3 anos ainda não têm acesso à creche em nosso país.
A inserção do Fundeb no texto permanente da Constituição Federal e a ampliação gradativa da complementação da União ao Fundeb significaram duas importantes derrotas para o governo Bolsonaro, uma vez que a equipe econômica do governo é radicalmente contra qualquer tipo de vinculação ou subvinculação orçamentária, assim como é radicalmente contra a ampliação dos investimentos em educação pública.
Outra conquista fundamental aprovada na Câmara foi a subvinculação de no mínimo 70% dos recursos do FUNDEB à remuneração dos profissionais da educação, quando a proposta do governo Bolsonaro era estabelecer um teto para remuneração, o que inviabilizaria o piso salarial dos professores e o pagamento da folha salarial dos trabalhadores em educação em diversos Estados e Municípios. Cabe destacar que 8 em cada 10 Municípios já aplicam 100% do Fundeb na remuneração dos profissionais da educação, uma vez que se trata de despesa obrigatória e que não se faz educação pública sem profissionais da educação.
Para contemplar a preocupação de gestores, 15% dos 10,5% que serão distribuídos com base no VAAT foram vinculados a despesas de capital, de modo que até 85% dos 10,5% poderão ser utilizados pelos entes subnacionais para a remuneração dos profissionais da educação, o que amenizará a situação fiscal de Estados e Municípios.
O texto aprovado, em sintonia com a legislação infraconstitucional que já vigora em nosso país, veda a destinação de recursos vinculados a manutenção e desenvolvimento do ensino ao pagamento de aposentadorias e pensões, embora o governo Bolsonaro tenha atuado para suprimir esse dispositivo do texto, de modo a drenar recursos da educação pública para a previdência.
O conceito denominado Custo Aluno Qualidade, a ser regulamentado através de lei complementar, também permaneceu no texto aprovado, apesar do Líder do Governo na Câmara ter orientado voto favorável ao destaque apresentado pelo Partido Novo, que buscava suprimir o CAQ do texto. Trata-se de um conceito que leva em consideração o investimento por aluno necessário para que o Brasil possa ofertar educação básica pública e de qualidade, uma vez que o investimento por aluno praticado no Brasil ainda é bastante inferior à média do investimento por aluno praticado nos países que integram a OCDE.
Na regulamentação infraconstitucional do CAQ, queremos garantir que toda escola pública tenha saneamento básico, água potável, infraestrutura adequada, acesso à internet e a recursos tecnológicos que favoreçam o processo de ensino e aprendizagem, laboratório de ciências, biblioteca, equipamentos para práticas esportivas e culturais, refeitório, profissionais bem remunerados e com formação continuada, dentre outros aspectos importantes para elevarmos a qualidade da educação básica pública.
Outra vitória importante para a educação, que significou mais uma derrota para o governo Bolsonaro, é que os recursos do Salário-Educação não poderão ser utilizados para suportar o aumento da complementação da União ao Fundeb nem para o pagamento de aposentadorias e pensões, uma vez que esses recursos financiam programas suplementares fundamentais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A proposta do governo Bolsonaro era transferir a responsabilidade desses programas para Estados e Municípios e usar os recursos do Salário-Educação para elevar a complementação da União ao Fundeb, numa equação que tinha como objetivo não elevar as “despesas” da União com educação.
Uma das concessões inscritas de última hora no substitutivo levado a voto pela relatora da matéria, que dialoga com as intenções privatizantes do governo Bolsonaro, foi a inserção de dispositivo prevendo que, em caso de falta de vagas na rede pública, será admitida, na forma da lei, a destinação dos recursos da complementação da União ao Fundeb distribuídos pelo critério do VAAT (10,5% da Complementação da União) às instituições referidas no caput do art. 213 da Constituição, quais sejam, as escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas.
Ocorre que a Lei nº 13.868, de 2019, ao modificar a LDB, definiu que as instituições de ensino dos diferentes níveis são classificadas em três categorias: I – públicas; II – privadas; e III – comunitárias. Definiu ainda que as instituições de ensino privadas e comunitárias podem ser qualificadas como confessionais e/ou certificadas como filantrópicas, de modo que o dispositivo inscrito no texto do novo Fundeb aprovado na Câmara dos Deputados abre uma janela para a destinação de parte dos recursos da complementação da União ao Fundeb para o financiamento de vagas em instituições privadas de ensino, em especial no âmbito da educação infantil, uma vez que o nosso déficit no acesso das crianças de 0 a 3 anos à creche ainda é imenso.
Será necessário, caso o dispositivo seja de fato constitucionalizado, disputar a regulamentação da matéria no plano infraconstitucional, de modo que uma parcela dos recursos da complementação da União ao Fundeb não possa ser destinada ao financiamento de vagas em instituições tipicamente privadas de ensino, que possuem fins lucrativos, ainda que qualificadas como confessionais e/ou certificadas como filantrópicas.
Na proposta do governo Bolsonaro, o novo Fundeb somente passaria a vigorar em 2022, o que produziria um apagão na educação básica pública em 2021, com fechamento de escolas e trabalhadores em educação sem remuneração. Mas essa proposta descabida também foi derrotada pela mobilização social, e o novo Fundeb, depois de aprovado e regulamentado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, passará a vigorar em 2021.
A complementação da União ao Fundeb, que hoje corresponde a 10% do total dos recursos aplicados por Estados e Municípios em manutenção e desenvolvimento do ensino via Fundeb, será elevada gradativamente: 12% em 2021; 15% em 2022; 17% em 2023; 19% em 2024; 21% em 2025; e 23% em 2026.
Outrossim, faz-se necessário destacar que o reconhecimento do caráter estratégico do Fundeb para a educação básica pública impulsionou a sociedade brasileira a reivindicar um novo Fundeb, de caráter permanente, com mais participação da União no financiamento, com maior potencial de reduzir as desigualdades educacionais, com maior potencial de valorização dos profissionais da educação, de modo que a luta por um novo Fundeb consagra um dos principais legados do governo do ex-presidente Lula na área da educação, que é justamente o atual Fundeb, instituído em 2006, regulamentado em 2007 e que expira neste ano de 2020. Sem o atual Fundeb não seria possível vislumbrar o horizonte que estamos vislumbrando na luta por um novo Fundeb.
Não poderia deixar de homenagear novamente a vigorosa mobilização social deflagrada pelos trabalhadores em educação, estudantes e suas entidades representativas, nem tampouco poderia deixar de destacar a aguerrida atuação da bancada da oposição na Câmara dos Deputados, merecendo destaque a atuação dos parlamentares que integram o Núcleo de Educação e Cultura do PT no Congresso Nacional, e que integraram a Comissão Especial instituída na Câmara dos Deputados para apreciação da PEC 15/15.
O papel da professora e governadora Fátima Bezerra (PT/RN), designada no âmbito do Fórum dos Governadores do Brasil para representar o mencionado fórum nas articulações e debates referentes ao novo Fundeb, também deve ser reconhecido. À véspera da votação do substitutivo apresentado pela deputada federal Dorinha Seabra à PEC 15/15, quando inúmeras ameaças rondavam a votação, a governadora Fátima Bezerra apresentou uma nota em defesa do relatório da deputada Dorinha, e essa nota foi assinada por 20 dos 27 governadores, fortalecendo ainda mais a mobilização pela aprovação do novo Fundeb.
O papel da relatora da matéria na Câmara dos Deputados, deputada federal Dorinha Seabra (DEM/TO), também é digno de nota. Ela desencadeou, através de inúmeras audiências públicas, um processo qualificado de debate e formulação, ouvindo diversos setores da sociedade e buscando construir convergências. Em nenhum momento a relatora aceitou a tarefa de construir um texto que unificasse a direita política e representasse uma derrota para a esquerda e para a educação pública.
A luta agora é no Senado Federal. A mobilização social que possibilitou a aprovação do novo Fundeb na Câmara dos Deputados precisa ter continuidade, para que possamos derrotar as propostas absurdas do governo Bolsonaro e aprovar um novo Fundeb que responda aos imensos desafios do Brasil na área da educação, com recursos públicos destinados às escolas públicas.
Por Bruno Costa – Assessor da Liderança do PT no Senado Federal