Existe uma crônica muito bonita da Marina Colasanti chamada “Eu sei, mas não devia”. É de 1995, mas vive rodando nas redes sociais de tempos em tempos. É desses textos atemporais. Fala da capacidade de nos acostumarmos a tudo que nos é dado, imposto ou acomodado. E não apenas no sentido da superação, mas do hábito de não insurgência.
De como acostumar-se é um processo natural, mas que nos compele a uma vida da qual não somos donos de nossos desejos, vontades, ansiedades, sentimentos. As rotinas, práticas, necessidades de sobrevivência, medos e condições sociais nos impelem a uma vida que pode nos roubar de nós.
Perante situações extremas que são naturalmente abraçadas, o texto de Marina sempre me volta à mente. Diante de um país sem limites como se tornou o nosso desde a metade da última década, seus argumentos ganham ainda mais sentido.
Primeiro a gente se acostumou a ouvir o questionamento sobre o resultado eleitoral, depois os argumentos fajutos e supostamente jurídicos para depor uma presidenta eleita. Depois nos acostumamos à defesa da tortura e de torturadores dentro do parlamento, símbolo da democracia representativa.
Então nos acostumamos ao discurso do uso da violência contra adversários políticos, às fake news como forma de ganhar eleições. E porque não foi feito nada, elas se multiplicaram. E à medida que se multiplicaram, tornaram impossível esclarecer que não eram verdadeiras. E porque não foi possível esclarecer, entraram no conceito de pós-verdade, em que fatos não importam. Viraram verdades.
Ao mesmo tempo, nos acostumamos a ver um juiz agir politicamente, descumprindo a Constituição e as regras processuais para perseguir um adversário e ser ovacionado nos meios de comunicação. E nos habituamos a engolir a propaganda midiática da imagem de herói vendida por ele e pelos procuradores da República que atuavam e atuam na operação Lava Jato.
De tal modo nos acostumamos, que quando o juiz virou ministro daquele que ajudou a eleger, também não nos espantamos. E quando um site divulgou tudo que as defesas dos réus diziam sobre a Lava Jato ser uma farsa, também naturalizamos.
A gente se acostumou a ver as políticas sociais serem destruídas, a ter um presidente que defende a volta ao regime civil militar que ceifou vidas e calou a democracia. Nos acostumamos a vê-lo dar respaldo a atos públicos para defender o fechamento das instituições democráticas dos outros dois poderes.
Nos acostumamos a um governo dirigindo o país pelo Twitter e promovendo as idas e vindas nas publicações, para confundir e desviar o foco dos reais problemas. Nos acostumamos a ter militares no governo em tal escala, que ocupam pastas de políticas públicas estratégicas e até a “Casa Civil”.
Nos espantamos, mas não muito, com o conteúdo vazado de uma reunião ministerial em que, diante de várias aberrações, o ministro do Meio Ambiente assumiu que queria “passar a boiada” para destruir a legislação ambiental brasileira. E tampouco nos incomodamos com a divulgação, pela imprensa, de outra reunião que havia ocorrido, apenas com os ministros militares, em que Bolsonaro resolveu “intervir” e mandar tropas para o Supremo Tribunal Federal (STF).
A gente se acostumou a ver o presidente da República chamar uma pandemia em escala mundial de “gripezinha” e “resfriadinho”, a relativizar a gravidade do problema, trocar ministros da Saúde, combater o isolamento social. E nos acostumamos com os números das vítimas da covid-19. Fomos de 10 a 100 mil mortos sem um só lamento oficial feito pelo governo central.
E fomos pra rua, voltamos pro boteco, lotamos as praias. Porque, afinal, que diferença há entre 130 mil, 200 mil, 1 milhão de mortos? Já nos acostumamos, já aceitamos o vírus.
A gente se acostumou a tentar fazer política pelas redes sociais, em debates acalorados e cheios de razão. A cobrar do outro, da esquerda, como se fosse essa um ente abstrato, que mude a situação por nós, que lute por nós, que ocupe as ruas por nós. A exigir uma boa comunicação e esperar que tudo seja diferente, sem que tenhamos que fazer nada para isso.
Uma frase do texto da Marina que considero impactante é quando ela diz: “A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.”
Quando o governo brasileiro determinou aos funcionários e diplomatas venezuelanos que abandonassem o território brasileiro no prazo de 60 dias, não nos espantamos. Mesmo que tenha sido uma ruptura diplomática sem precedentes, que ocorre apenas, em regra, em caso de escaladas militares ou de preparação para a guerra.
A visita do secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, à fronteira do Brasil com a Venezuela mereceu alguns discursos e reações no parlamento, mas também não nos afetou.
Jair Bolsonaro proferiu um discurso na Assembleia das Nações Unidas em que responsabilizou indígenas e caboclos pelos incêndios na Amazônia, negou a ação humana nas queimadas no Pantanal e se disse preocupado com o coronavírus “desde o começo”.
Nos acostumamos aos atos extremados, desviantes, às mentiras e aos discursos que se impõem aos fatos. Por que mesmo?
Voltando pra Marina “a gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma.”
E foi aí que me peguei nas palavras do ex-presidente Lula na segunda-feira (21), no lançamento do Plano de Transformação e Reconstrução do Brasil” pelo PT: “O que está faltando acontecer para retomarmos nossa capacidade de luta?”
Talvez largarmos o costume, trocá-lo pela indignação cotidiana. Uma de novo tipo, que consiga se fazer ouvir e sentir. Como? Bem, não creio que alguém tenha a resposta, eu menos. Mas, no caminho, o importante é não nos perdermos de nós.