O cerco contra a fome – Por José Graziano da Silva

Há uma novidade nos ares do mundo. Ela carrega a energia renovadora ausente na longa convalescência da crise econômica global e sugere um novo sentido à arquitetura que se reconstrói. Nações pobres e em desenvolvimento apertam o cerco contra a fome.

Nele fervilha aquilo de que mais se ressente a já saturada economia mundial: novas fronteiras de demanda e a disposição de materializá-la num ambiente inclusivo e empreendedor.

Nenhum governo em qualquer tempo jamais se apresentou como aliado da fome, que enreda a vida de 870 milhões de pessoas no planeta.

Nos EUA, homens e mulheres em idade produtiva compõem a principal clientela do vale-refeição fornecido pelo governo para mitigar a insegurança alimentar. O enfrentamento da fome é um dever da civilização em qualquer latitude.

Mas o engajamento e a determinação para vencê-la assiste agora a uma mobilização singular protagonizada pelos líderes de países, blocos, regiões e organizações. Dois gigantes demográficos integrados por 1,6 bilhão de habitantes, distribuídos em cerca de 90 países, estão unidos no propósito de erradicar a fome até 2025: a África e a América Latina e Caribe.

Em 2005, os países da região lançaram a Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome. Essa meta foi referendada pelos chefes de Estado e de Governo da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) em 2009. E, desde então, está no topo da agenda regional. O compromisso acaba de ser reafirmado na cúpula da Celac realizada no final de janeiro em Cuba.

Pouco antes, em dezembro passado, a Cúpula Extraordinária Alba – Petrocaribe já havia aprovado um plano de erradicação acompanhado de dotação orçamentária para erradicar a fome na zona desse novo bloco econômico formado por 18 países caribenhos e centro-americanos.

E também em janeiro agora, enquanto a Celac se reunia em Havana, os chefes de Estado e de Governo africanos assumiam durante a Cúpula da União Africana essa mesma meta: erradicar a fome até 2025, um desafio originalmente proposto numa Reunião de Alto Nível realizada em Addis Abeba (Etiópia), em julho passado, organizada pela FAO, o Instituto Lula e a União Africana. Essas não são apenas referências exclamativas.

Mais de 40 países em desenvolvimento (o Brasil entre eles) atingiram antecipadamente a meta de reduzir a proporção de pessoas com fome pela metade até 2015, conforme estabelecido pela ONU nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Catorze deles são nações africanas: Argélia, Angola, Benin, Camarões, Chade, Djibuti, Gana, Malavi, Marrocos, Níger, Nigéria, São Tomé e Príncipe, Seychelles e Togo.

Brasil, Chile, Guiana, Peru, Venezuela, Honduras, Nicarágua, Panamá, Antilhas Holandesas, Cuba, República Dominicana, São Vicente e Granadinas já fizeram o mesmo na América Latina e Caribe.

Portanto, não se trata de um movimento protocolar, mas do adensamento de uma trajetória autopropelida por resultados encorajadores que se baseiam em uma visão renovada do papel da segurança alimentar na luta pelo desenvolvimento.

Vencer a fome não configura mais uma política insulada no interior das prioridades de um ou outro governo. Trata-se de um catalisador que qualifica a natureza do crescimento e se oferece como uma credenciadora de políticas e sujeitos para alcançá-lo no século XXI. O conjunto robustece o consenso em torno dessa agenda e alarga as possibilidades de fazer da erradicação da fome a grande bandeira do desenvolvimento para o pós-2015 – quando se conclui o prazo para o cumprimento dos Objetivos de desenvolvimento do Milênio.

Mais de 500 milhões de pequenas propriedades agrícolas no mundo estão nesse radar de oportunidades transformadoras. Em 93 países, segundo levantamento feito pela FAO, esse universo representa, em média, mais de 80% das propriedades agrícolas; mais de 70% das pessoas enredadas na lógica da miséria e da insegurança alimentar concentram-se justamente nas áreas rurais dos países em desenvolvimento.

A solução está no problema: é também aí que pulsa a principal chance de fazer da luta contra a fome uma engrenagem de geração de renda e melhoria de vida.

Na África, onde 75% da população têm 25 anos ou menos, a criação de empregos configura uma emergência social. E com uma população que deve permanecer majoritariamente rural pelos próximos 35 anos, o fomento à agricultura é o principal atalho na construção de uma resposta inclusiva e sustentável para a região.

Não por acaso, 2014 é o Ano Africano da Agricultura e da Segurança Alimentar, mas também o Ano Internacional da Agricultura Familiar das Nações Unidas.

Perguntas e respostas se entrelaçam na marcha batida desse despertar simultâneo para as incontornáveis oportunidades abertas pela luta contra a fome.

Especialmente notável é o fato de que a determinação de vencê-la se agiganta em continentes inteiros do mundo pobre e em desenvolvimento, enquanto o desafio se espraia como uma fatalidade desconcertante em nações ricas.
Bancos de alimentos se multiplicam na Europa no rastro do desemprego e do achatamento da renda de contingentes inteiros de classe média. Nos EUA, homens e mulheres em idade produtiva compõem a principal clientela do vale-refeição fornecido pelo governo para mitigar a insegurança alimentar. Até recentemente, essa fila era composta essencialmente de crianças e idosos.

O enfrentamento da fome é um dever da civilização em qualquer latitude. Mas o que os tempos anunciam na África, ou na América Latina e no Caribe, é a valorização do potencial reordenador que essa agenda agrega à construção do desenvolvimento. Mais que um alento para os tempos difíceis, trata-se de uma ferramenta de capacitação da sociedade para reconciliar suas demandas e potencialidades na construção, simultânea, do crescimento e da cidadania.

Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico de 25 de fevereiro.

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