ARTIGO

“O grito calado que há em nós” – Por Paulo Paim

Paulo Paim observa que a total incompetência, ignorância e descaso do governo federal ficam explícitas nas muitas crises que o Brasil enfrenta hoje
“O grito calado que há em nós” – Por Paulo Paim

Foto: Alessandro Dantas

Nunca imaginaríamos que um abraço ou um aperto de mão seriam gestos civilizatórios dos mais difíceis de acontecer. Essa crise toda está nos fazendo pensar e refletir: que mundo nós queremos? Será que o chão que pisamos, até agora, é suficiente para fazer com que entendamos que a nossa sobrevivência é dependente do comportamento carinhoso, solidário e fraterno do ser humano?

A saúde é o principal bem que temos; ela é tudo: princípio, meio e fim. Sem saúde não há vida, não há trabalho, sonhos, esperança e amor. Quando a gente adoece ou quando alguém de que gostamos tanto e que guardamos “do lado esquerdo do peito” vai embora e deixa saudade, o que nos resta? A lembrança? As palavras que ficaram no meio do caminho? O arrependimento de não ter acompanhado o pôr do sol com olhos de criança?

O adoecimento é uma flecha que nos atinge para dizer que somos frágeis. Mas, com o tempo, fomos compreendendo, pesquisando e descobrindo novos conhecimentos para prevenção e tratamentos eficientes de doenças. A ciência nos faz enxergar que é possível evoluir sem descaracterizar o humano que há em nós. Há de se buscar sempre o equilíbrio para assegurar o avanço e o respeito dentro de um contexto de indiferenças.

Este tempo atual é atribulado, mas jamais podemos negá-lo. A pandemia da covid-19 veio para nos alertar que como as coisas estão no mundo elas não podem ficar. Há imensos problemas que a humanidade ainda não soube resolver. Ou de uma maneira mais efusiva e questionadora: ela sabe os seus problemas, mas a questão é não resolvê-los por simples coerência ideológica e domínio dos mais poderosos sobre os mais fracos. A eterna desfaçatez dos governos e grupos econômicos.

Milhares estão morrendo com essa pandemia. O mundo se curva, atônito, a cenas vistas somente em guerras, catástrofes, atentados terroristas e fome coletiva. Uma triste realidade. Há governos que estão sabendo enfrentá-la, mas há governos que se perderam nas suas próprias insignificâncias e perversidades, fazendo parte daquele seleto grupo de homens que não dignificam a sua própria existência e história.

Nós queremos que as pessoas se curem, estejam vivas para serem felizes e possam olhar os seus entes e amados e dizer um “bom dia!”, um “como está?”, “posso lhe ajudar?” ou simplesmente “te amo!”. As injustiças não deveriam existir. Mas elas estão aí para serem combatidas, por meio da resistência das nossas consciências e atitudes. Além de termos uma das maiores concentrações de renda do mundo e entre os mais altos índices de desigualdade social e econômica, sofremos ainda com a inépcia do governo no combate à covid-19. Esse é o nosso Brasil!!!

Não é só uma gripezinha, como afirmou o presidente da República. Não. Ela está matando muita gente. As imagens que todos os dias nos chegam mostram claramente o nível de situação e desleixo com que o país e a população estão sendo submetidos. As valas abertas, o choro e as lágrimas de anônimos, pais, mães, filhos não saem das nossas cabeças. Há falta de equipamento de proteção individual e logística adequada aos profissionais da saúde; médicos e enfermeiros perdendo a vida. Cada dia aumentam os casos de pessoas contaminadas. Não há planejamento coordenado e unificado com municípios, estados e governo federal. Num dia, abre-se o comércio, no outro, fecha-se; o auxílio emergencial não chega.

Estamos aquém de testes necessários para diagnosticar a covid-19. O professor Daniel Lahr, do Instituto de Biociência da USP (Universidade de São Paulo), afirmou em entrevista ao G1, que “o Brasil está testando brutalmente menos do que deveria. Na melhor das hipóteses, 20 vezes menos do que é considerado adequado. É tão pouco que a amostra pode ser basicamente ignorada”. Nós estamos errando até no básico do processo de combate à pandemia. Não sabemos qual a nossa verdadeira realidade. A qual lugar esse cenário vai nos levar? O Congresso também tem que discutir essa questão. Onde vamos parar?

Segundo o site Our Word in Data, no Brasil, a média até a primeira semana de junho foi de 2,28 pessoas testadas a cada 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, são 61,59 para cada 100 mil; na Itália, 69,25; em Portugal, 85,81; no Chile, 35,97. A OMS (Organização Mundial da Saúde) afirma que quanto mais casos o país registra, mais testes deve fazer. O Brasil realiza 1,1 teste de covid-19 para cada caso confirmado da doença. Ou seja, algo está errado e muito errado.

O professor Alessandro Farias, coordenador da frente de diagnósticos da força-tarefa da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), também alerta e reforça a importância dos testes. Observem o que ele disse ao G1: “Eles são a base para você reabrir os serviços. O melhor exemplo é a Alemanha: começaram a reabertura, monitorando a taxa de transmissão. Faziam mais de 500 mil testes por dia. Quando notaram que a contaminação estava aumentando de novo, voltaram atrás e fecharam novamente os estabelecimentos”.

Esses três parágrafos acima resumem, no meu entendimento, a total incompetência, ignorância e descaso governamental para lidar com uma crise de uma envergadura como a que o país está presenciando hoje. Isso está, inclusive, nos causando sérios problemas internacionais. Há países, como, por exemplo, Portugal, que já está pensando em barrar a entrada de brasileiros, seguindo os critérios de controle epidemiológico da União Europeia. Quer dizer, o Brasil, com sua política pífia de combate à covid-19, está se autoisolando.

Que futuro nos espera? As incertezas do amanhã já são sonoras no presente e saem das gargantas da nossa brasilidade e das cores vivas de um povo que ainda acredita que para ter dignidade é preciso que o direito de ser feliz seja para todos. O que nós temos para dizer a milhões de jovens, que estão aí pelo país afora perseverando? Sim, pois se temos que acreditar em alguém, que seja nos jovens. Eles estão entendendo que é preciso uma nova estética do bom combate e que gritos seletivos já não servem mais.

Disse a um jovem: somos aquilo que acreditamos ser. Isso ninguém nos tira, é da alma humana e navega em harmonia com nossas inquietudes na ritual evolução do individual ao coletivo. É essa intensidade de vida e sentimentos que buscamos nesse canto sufocado pela liberdade, que se expressa em “O grito”, pintura clássica de 1893, do norueguês Edvard Munch. Não há som… Há um silêncio e um grito calado em nós que separa as verdades das mentiras.

Paulo Paim está no terceiro mandato como senador, eleito pelo PT do Rio Grande do Sul. Atua na defesa dos direitos sociais e trabalhistas e é presidente da Comissão de Direitos Humanos. Autor das leis dos Estatutos do Idoso, da Pessoa com Deficiência e da Igualdade Racial, e relator do Estatuto da Juventude. Foi deputado federal constituinte em 1988.

*Artigo originalmente publicado no Nexo Jornal

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