A entrevista do senador Tasso Jereissati, ex-presidente do PSDB, ao Jornal O Estado de São Paulo, no dia 13 de setembro último, é o reconhecimento tardio da irresponsável atuação do partido nos últimos anos no Brasil. O cacique tucano apresenta três erros que denomina de “memoráveis”, que vão do questionamento ao resultado eleitoral de 2014 à participação no governo Temer, passando por votações no Congresso Nacional a favor das famosas “pautas bombas”, que desestabilizaram o governo da presidenta Dilma Rousseff e jogaram o país em uma crise sem precedentes.
As declarações não deixam de ser interessantes como documento histórico de um dirigente partidário, reconhecendo erros graves cometidos pelo coletivo ao qual pertence, já antes apontados por seus adversários. Mas chama atenção não apenas pelo que revela, mas sobretudo pelo que oculta da realidade política recente do país, e o papel desempenhado por um de seus maiores partidos políticos.
Não tratou o senador, estrategicamente, do que seria muito relevante: o processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff em 2016. Não ponderou como a farsa do golpe parlamentar foi nevrálgica para o estado de coisas atual no país. Não expôs como o PSDB insuflou as manifestações de rua com caráter claramente antidemocrático, com significativo apoio de pedidos de volta à ditatura civil-militar, e de onde até membros do próprio partido chegaram a ser expulsos, impedidos de participar.
Ter em mente aqueles momentos históricos é fundamental para compreender a atualidade. De fato, como aponta Jereissati, o PSDB foi “engolido pela tentação do poder”. E para alcançar esse desejo brincou com fogo, ou melhor, brincou com o fascismo, cujos germes estavam nas ruas, nos gabinetes, na criação de grupos de personagens que surgiram e se notabilizaram pela radicalidade de discurso e ideias utilizando sobretudo as redes sociais.
Sabia o partido que o movimento a favor do impeachment não se consolidava em bases democráticas. As manifestações xenófobas, de ódio ao PT, a produção de conteúdos profundamente misóginos e agressivos contra a presidenta Dilma, a utilização de material apelativo, falas destrutivas, que pregavam a antipolítica, tudo isso a par de se apresentarem e serem, de fato, sinais óbvios de riscos à soberania popular, foram fartamente apoiadas e utilizadas pelos tucanos como combustível para alavancar e sustentar o golpe. Na ânsia de destruir o PT colocaram em risco a própria democracia.
Pôs-se o PSDB lado a lado, aplaudindo e festejando, com parlamentares que declararam voto pelo afastamento da presidenta eleita homenageando notórios torturadores e assassinos da ditadura militar, como o coronel Brilhante Ustra, um homem de mente doentia, que levava crianças pequenas para ver as mães serem torturadas nuas, cheias de ferimentos e escoriações, vomitadas e urinadas, apenas como forma de pressioná-las a falar.
Nesse diapasão, mulheres e homens que outrora construíram uma sigla que intentava se pautar pela socialdemocracia, ombrearam-se com figuras que evocavam sentimentos tirânicos e perversos, aproveitando a expressão e síntese do pensamento de uma parcela considerável da sociedade brasileira, embora de forma difusa e complexa. Pensamento e práticas esses que deveriam ser combatidos por todos aqueles comprometidos com valores republicanos. Superestimaram nossas frágeis estruturas democráticas, reedificadas há pouco mais de 30 anos de retomada.
O veneno estava exposto em frasco aberto. O germe do fascismo aparecia em cores límpidas, nos tanques de gasolina dos carros com fotos da presidenta em posição sexual, nas faixas em manifestações pedindo a volta da ditadura, nos vídeos de ódio e ameaças, nas brigas de rua, na pregação do medo, na expulsão de pessoas de ambientes públicos ou privados, incluindo hospitais, nos gritos de “vai tomar no cu”, por fim, na comemoração da morte de dirigentes petistas ou seus parentes e na ascensão de propostas como a “escola sem partido” e de movimentos como o MBL. Ampliar o caos era apenas consequência. Mas tudo foi ignorado em nome da destruição do adversário comum, que era o Partido dos Trabalhadores. O que não mereceu aplausos foi brindado com o ensurdecedor silêncio.
A crise econômica e social na Alemanha pós Primeira Guerra Mundial, o declínio do poder público tão bem retratada por Ingmar Bergman em “O Ovo da Serpente” permite-nos um olhar crítico daquele país antes do surgimento do nazismo e sendo preparado para ele. São muitas as similitudes que aproximam o Brasil do golpe da Alemanha da República de Weimar. Em ambos o medo é combustível, diuturnamente alimentado por propaganda racista, xenófoba, em busca de um militarismo salvador e um suposto combate à corrupção.
Cá como lá, hoje temos o risco exposto não apenas como fratura, mas como possibilidade real de poder. Temos nosso Hitler brasileiro, que move multidões com seu discurso de limpeza, que prega publicamente – e impunemente – o fuzilamento de opositores, de forma espetaculosa, que defende a tortura como método e nega a existência da ditadura que ceifou vidas.
O antissemitismo do jovem Adolf Hitler aqui se chama LGBTfobia, misoginia, racismo e xenofobia. E assume idênticas justificativas de combater “a esquerda” e os “comunistas”. Restaria, pois, saber do dirigente tucano e de seus colegas de legenda o quanto dessa autocrítica pretende ser aproveitada para um segundo turno das eleições presidenciais de 2018, caso o cenário atual se confirme e haja uma disputa entre os candidatos Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Se farão a opção do silêncio eloquente, do apoio à barbárie, ou a opção civilizatória, a fim de que o debate entre projetos de país ocorra dentro do campo de disputa democrática, evitando que o ovo da serpente dê vida ao monstro do fascismo.