Por Bruno Moretti*
Mesmo diante das restrições impostas ao gasto público pelas regras fiscais, o ministro Paulo Guedes afirmou que não tem intenção de elevar o teto de gastos, mas sim de quebrar o piso.
A ideia remete à redução de despesas obrigatórias e vinculações de receitas, o que requereria alteração constitucional.
No caso do SUS, a EC 95/2016 (teto de gastos) já desvinculou o mínimo obrigatório, que era de 15% da Receita Corrente Líquida – RCL de cada exercício, conforme a EC 86/2015.
Em seu lugar, até 2036, previu que valeria o piso de 2017 (15% da RCL de 2017), mais o IPCA dos doze meses concluídos em junho do exercício anterior a que se refere a proposta orçamentária.
O piso, portanto, ficou congelado nos valores de 2017.
Sem crescimento real do mínimo obrigatório, o piso ainda não quebrou, mas está gravemente rachado.
Caso valesse a regra anterior, a saúde deveria aplicar em 2020 pelo menos R$ 132,4 bilhões, mais de R$ 10 bilhões acima do valor previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2020.
Em 2019, a perda gira em torno do mesmo montante.
Portanto, em dois exercícios, já são quase R$ 20 bilhões subtraídos da saúde em razão do congelamento do mínimo pela EC 95, que não afetaria o setor, lembram?
Mas a situação que já é tão grave pode se agravar mais.
No orçamento para 2020, há outra notícia pior para o SUS: a regra de ouro.
Trata-se de outra regra fiscal restritiva.
Ela prevê que o governo federal não pode se endividar acima das despesas de capital, a menos que o Congresso autorize mediante crédito orçamentário específico.
A regra de ouro busca proteger as gerações futuras, impedindo endividamento para financiar despesas correntes.
Todavia, no Brasil, despesas de capital incluem até gastos financeiros como a atualização monetária da dívida.
A rigor, a regra de ouro não preserva investimentos, tanto que eles estão em queda livre nos últimos anos, com previsão de menos de R$ 20 bilhões no orçamento de 2020.
Em 2014, para se ter uma ideia da redução, o orçamento previu R$ 67 bilhões em investimentos.
Outro ponto é que despesas como saúde e educação, embora classificadas como correntes no orçamento público, são cruciais para o desenvolvimento socioeconômico do país.
A combinação das regras fiscais restritivas – regra de ouro, Lei de Responsabilidade Fiscal e teto de gastos – impõe redução orçamentária a tais setores, o que tem efeitos sociais nocivos, mas também econômicos no longo prazo.
Num país cuja economia não cresce e padece de insuficiência de demanda, agravada pela política de austeridade, a arrecadação é fraca e o governo se endivida para cobrir suas despesas.
Ultrapassado o limite de que trata a regra de ouro, o governo seleciona despesas correntes que ficam condicionadas à aprovação de crédito pelo Congresso.
Mesmo vigente a lei orçamentária, tais despesas não estarão autorizadas e a execução delas dependerá de uma decisão posterior do Parlamento.
O governo prevê na Lei de Diretrizes Orçamentárias que as despesas sobre as quais incide a restrição da regra de ouro serão primárias, excluindo os encargos financeiros da dívida pública.
Ademais, entre outras despesas primárias, elege o SUS, que poderá ser tungado em R$ 32,5 bilhões.
Parcela dos recursos não autorizados está alocada em financiamento de serviços em hospitais e UPAs, equipes de Saúde da Família, vacinas e medicamentos, para citar alguns.
A rigor, a despesa condicionada não deveria constar no mínimo obrigatório de saúde.
Primeiro, porque ela não estará autorizada, caso o orçamento seja aprovado conforme o Executivo o encaminhou ao Congresso.
Segundo, porque as despesas condicionadas ficam segregadas em órgão orçamentário específico, em flagrante desacordo com o art. 12 da LC 141/2012, que diz que os gastos contabilizados no piso devem ser alocados no Ministério da Saúde.
O orçamento de 2020 foi encaminhado com R$ 900 milhões acima do piso congelado da EC 95.
Resultado: deduzidas as despesas condicionadas, a saúde poderá ficar R$ 31,6 bilhões abaixo do piso.
Do total previsto para ações e serviços públicos de saúde em 2020 (R$ 122,2 bilhões), 27% ficam condicionados, ou seja, sob a restrição da regra de ouro.
Caso esta despesa não seja executada, a importância aplicada no setor cairia para os níveis anteriores a 2014, produzindo uma crise sem precedentes na saúde, principal problema do país, conforme recente pesquisa Datafolha.
Entre 2018 e 2020, os orçamentos federais de saúde, elaborados sob a égide da EC 95, sequer garantiram a reposição da inflação, o que não ocorreria sem o congelamento do mínimo obrigatório do setor, que, na prática, implica um piso declinante em relação à receita corrente líquida de cada exercício.
Agora, percebe-se que o patamar do debate volta a se retrair.
Aprovado o orçamento nos termos propostos, mesmo o piso rebaixado da EC 95 seria letra morta, uma vez que o governo escolheu condicionar despesas do SUS, que poderiam encolher mais de R$ 30 bilhões.
Genial, não?
Todos aguardam se o governo realmente encaminhará ao Congresso sua proposta de desvinculação do orçamento, o que desmontaria o pacto constitucional de 1988, afetando, principalmente, saúde e educação.
No entanto, criando a figura esdrúxula do mínimo obrigatório condicionado em saúde, o governo simultaneamente respeita e afunda o piso.
Isto é, mantém a regra do piso rachado da EC 95, que, todavia, já não precisa ser observada.
O rombo potencial é de R$ 31,6 bilhões, violando o direito à saúde.
Com a palavra, os rigorosos especialistas em contabilidade pública e burocratas de controle, outrora ávidos por denunciar manobras fiscais no orçamento público e seus efeitos sobre o bem-estar social.
*Bruno Moretti é economista pela UFF. Mestre em Economia pela UFRJ. Doutor e pós-doutor em Sociologia pela UnB.