Direitos Humanos

Pandemia deixa população negra ainda mais vulnerável

Audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado nesta segunda (12) mostrou os impactos da Covid-19 sobre a população negra, sob os pontos de vista das saúde, da educação, do trabalho e da segurança. Para o presidente da comissão, Humberto Costa (PT-PE), a doença “está longe de ser democrática”
Pandemia deixa população negra ainda mais vulnerável

Foto: Agência Senado

A população negra, que já vivia uma situação de enorme vulnerabilidade antes da pandemia, foi a mais prejudicada pelos efeitos do novo coronavírus e o descontrole do governo federal diante da Covid-19, tanto na saúde quanto na educação, na segurança e na pobreza. Essa foi a principal denúncia do debate promovido pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado nesta segunda (12).

Para o presidente da comissão, senador Humberto Costa (PT-PE), proponente da audiência pública, essa doença “está longe de ser democrática”, já que produz efeitos diferentes sobre cada segmento da sociedade. “As populações vulneráveis são as que mais sofreram na pandemia, e isso reflete um cenário de profunda desigualdade no nosso país que forçosamente nos leva a analisar a pior herança da escravidão, que é o racismo”.

O senador mencionou que a CPI da Covid, da qual é membro, está apurando responsabilidades pela tragédia sanitária que já matou mais de 530 mil pessoas, a maioria negra.

De acordo com Givânia Maria da Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), os quilombos já estavam “asfixiados” quando a pandemia chegou. “O oxigênio, que são as políticas públicas, já tinha sido tirado. Tivemos que acionar o STF para que os quilombos entrassem na lista de prioridade para a vacinação”, afirma.

Ela lembra que a pandemia atingiu a população negra num momento em que ela já estava enfrentando uma guerra permanente contra o extermínio e o genocídio. “Após o golpe de 2016, vimos aumentar em 350% o número de assassinatos de lideranças quilombolas nos anos de 2017 e 2018, o que é um absurdo”, denunciou. “E essas mortes acontecem exatamente quando eles procuram o Estado para que cumpra o que está na Constituição”, adverte.

De acordo com Givânia, se os quilombolas já estavam atrás na fila antes, agora, com a pandemia e o desgoverno no país, talvez já nem estejam na fila. “Se ainda estávamos na fila pra acessar direitos constitucionais, eu diria que hoje não estamos nem na fila. Quem está na fila ainda pode chegar, mas a situação hoje é a de quem já esteve na fila, mas não está mais”, alertou.

Racismo
Humberto considerou lamentável que assuntos como o racismo ainda tenham que ser discutidos no país. Para ele, o preconceito é a “pior herança do ponto de vista dos direitos humanos”, já que se manifesta nas desigualdades e dificuldades de acesso dos negros a bens, serviços, políticas públicas e até a vacinação contra a covid-19.

— Apesar de ser um tema que já deveria ter sido banido, o racismo ainda é extremamente forte em boa parte dos países e, especialmente, no Brasil. Muitos setores vulneráveis estão sujeitos [ao racismo] no nosso país, e as mazelas causadas pela pandemia ocorrem de forma diversa para cada setor.

Na opinião da senadora Zenaide Maia (Pros-RN), a pandemia de coronavírus trouxe luz sobre problemas estruturais, como o corte em recursos para a educação, especialmente para as minorias. Segundo ela, o governo comete irresponsabilidades sobre a vida e “normaliza o fato de morrer”.

Ao observar que os negros já sofrem histórico estrutural de violência, Zenaide declarou que a situação piorou com o olhar do presidente da República. Conforme a senadora, as atitudes de Jair Bolsonaro prejudicam especialmente a população mais empobrecida e carente do país. “Temos uma política de Estado que não respeita a maioria do seu povo. O racismo é institucional e, o mais grave, considerado como normal. A gente vê claramente que os assassinatos advêm justamente de quem lhe devia dar segurança. É o Estado quem primeiro condena, assim como faz com mulheres, população LGBTQIA+ e isso piorou assustadoramente nos últimos anos”, disse.

Diálogo
Ex-presidente da CDH, o senador Paulo Paim (PT-RS) disse que defender os negros é questão de “honra, amor e humanidade” e que não há como se pensar em desenvolvimento sem cuidar dessas pessoas.

O parlamentar defendeu a manutenção do diálogo, a produção de vacinas contra a covid-19 com agilidade, bem como a análise de propostas como o PLS 482/2017, que determina que o Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, seja declarado como feriado nacional. “As grandes conquistas da humanidade foram obtidas conversando. E as grandes falhas ocorreram pela falta de diálogo, quando vêm as guerras e a barbárie. Por isso, eu digo: com a democracia, tudo, sem ela, nada”, salientou, em vídeo enviado à CDH.

Retrocessos
O coordenador-geral do Movimento Negro Unificado, Silas Félix, analisou que os direitos dos negros no Brasil sofreram retrocessos. Ele leu carta que o conjunto de entidades voltadas aos direitos dos negros preparou para a CDH, com denúncias sobre temas como “desorganização de políticas públicas elaboradas por governos anteriores” e propostas de debates junto ao Senado.

Entre as iniciativas defendidas na carta estão a aprovação das emendas à Constituição que reestrutura o modelo de segurança pública a partir da desmilitarização da polícia e a que institui o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial, além dos projetos de lei que acaba com os autos de resistência e que institui o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens. Além disso, defendem a continuidade da Lei de Cotas, a reversão da PEC 95, que congelou os gastos do estado por 20 anos, e uma reforma tributária com taxação de grandes fortunas, dos lucros e dividendos.

Segurança pública
“O povo negro não quer só existir, mas quer bem viver”, afirmou a coordenadora do Coletivo Nacional de Juventude Negra, Dara Sant’anna. Para ela, é fundamental a mudança de entendimento sobre o que é segurança pública. “Hoje a lógica é a de guerra, de luta armada, que está pautando uma guerra civil no país. Essa lógica precisa parar, porque o estado tem responsabilidade com a vida da população. É preciso entender a segurança como a garantia de direitos. A garantia da lei e da ordem, do pleno gozo de direitos e de ir e vir não são dadas para quem vive na periferia. É preciso pautar isso”, sugeriu.

Segundo ela, essa mudança de concepção envolve a taxação de grandes fortunas, como defende a carta dos movimentos. “Estamos num país que voltou para o Mapa da Fome e que ao mesmo tempo teve 11 novos bilionários na lista da Forbes. E esse dinheiro precisa se voltar para a população, porque muitas vezes essas novas fortunas são frutos de heranças escravocratas”, afirmou.

Ela defendeu investimentos e treinamento para policiais que, segundo afirmou, entram despreparados nas periferias. Para Dara, também são fundamentais ações como iluminação das ruas e saneamento básico pensados sob o ponto de vista da segurança pública, “para que as pessoas possam ter novas perspectivas de vida”.

Dara também defendeu que as operações policiais tenham como base a inteligência, a fim de que não se faça apenas apreensão de armas e drogas, “mas se mantenha essa população viva”. Para a debatedora, essa questão passa, principalmente, por entender quem são os grandes mandantes do tráfico de drogas no país. “Os grandes traficantes não estão nas grandes periferias. Estamos aqui pedindo para esta Casa que nos representa, que faça um processo de rediscussão do que é segurança pública no nosso país. Precisamos parar com essas guerras para termos democracia racial, comprometida com um viés de responsabilização do Estado, e não abriremos mão disso por qualquer viés de resolução rápida e que não dá retorno rápido”, protestou.

Negros na UTI
Já a pesquisadora em Saúde da população negra e HIV/Aids, professora Maria Aparecida do Carmo, destacou o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) nos cuidados com os negros e defendeu o fortalecimento dos programas sociais em saúde, principalmente voltados para a classe.

“A população negra está doente e na UTI. O SUS, tão importante e tão parceiro e transversal, precisa dar respostas para termos menos pessoas sofrendo de problemas mentais, menos pessoas com possibilidades de menos acesso a alimentação, emprego, moradia, de políticas públicas. E que, na saúde, tenhamos mais equidade”, ponderou.

“Hoje os direitos de bem viver estão sendo discutidos na América Latina e o Brasil não pode ficar de fora. Mas temos um desgoverno que desconstrói toda e qualquer política integral de saúde da população negra. Os direitos do bem viver são os direitos à agua, à alimentação, ao ambiente são, à comunicação e informação, à cultura e ciência, à educação, à moradia, à saúde, ao trabalho e à seguridade social. Se isso não acontece no conjunto da sociedade, o que acontece é o desmonte de todas as políticas públicas”, explicou.

Ana Georgina Dias, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) na Bahia, apresentou dados impactantes sobre os efeitos da pandemia junto à população negra. Segundo ela, das 4,6 milhões de pessoas que perderam o emprego no primeiro semestre de 2020, quando a pandemia atingiu o país, 3,8 milhões – ou 82% – são negras. “Os números que já eram bastante desfavoráveis, especialmente quando se faz cortes por raça e gênero, se potencializam quando a pandemia tem a sua piora”, afirmou.

Nota de repúdio
No começo da audiência pública, Humberto lamentou recentes mortes de mulheres trans no país. Ele citou o caso de Roberta Nascimento Silva, de 33 anos, que teve o corpo queimado enquanto dormia no centro do Recife no fim de junho. Ela foi a quarta travesti assassinada em Pernambuco em menos de um mês. Humberto mencionou ainda a morte de  Kalyndra Nogueira da Hora, de 26 anos, que teria sido morta por asfixia pelo companheiro dela, em 18 de junho, também na capital pernambucana.

Para o senador, casos assim são inaceitáveis. “A comissão repudia veementemente esses atos de violência brutais. Rejeitamos e denunciamos esses atos de tamanha perversidade, que precisam ser apurados e punidos. É dever de todos nós garantir que as identidades de gênero e orientações sexuais sejam respeitadas”, disse o senador.

(Com informações da Agência Senado)

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