No universo da minha infância, eu ficava imaginando que as pandorgas que eu soltava iriam percorrer vários caminhos no céu até encontrarem um cantinho de alegria e de felicidade. Esse meu sonho tinha a mesma cor do sonho de outras crianças.
Só fui me dar conta disso na minha adolescência e juventude quando pude compreender quão importante é manter vivo o brilho dos olhos da criança. Para elas não há diferença entre as pessoas, todos são iguais e têm os mesmos direitos. Criança não tem preconceito.
Abraçar, sorrir, dar a mão ao outro que pede ajuda e repartir o pão, sem nenhuma preocupação ou cobrança, é tão natural para uma criança quanto navegar pelas “águas mansas” do útero da mãe a espera do grande dia do nascimento.
Nelson Mandela dizia que ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.
Quando acordo, eu sempre penso no que fiz, no que não fiz e no que eu poderia ter feito em todos esses anos. Penso no que posso fazer pela nossa gente. Isso bate forte na minha alma e faz com que, todos os dias, eu continue buscando e deixando correr pela vida a criança que eu fui.
A felicidade é um direito sagrado de todas as crianças. É por meio dessa bem-aventurança que se descobre o caminho da existência e da eternidade. Sem felicidade não há alvorecer e nem pôr do sol. A luz que reflete não mais ilumina, mas ofusca o hoje e o amanhã.
Carinho também é direito fundamental. Pobreza material não significa pobreza afetiva. Eu disse uma vez que uma criança pobre pode estar mais provida de afeto e de amor em um lar pobre do que uma criança que esteja em um lar onde a família tenha mais condições.
Mas é óbvio que a pobreza, quando atinge níveis extremos, atua de forma cruel para destituir as pessoas daquele mínimo necessário de dignidade humana. Por isso que combater a pobreza, a miséria, a fome é fundamental para a garantia dos direitos das crianças.
Relatório da Fundação Abrinq, divulgado no ano de 2019, apontou que 10,6 milhões de crianças e adolescentes vivem na pobreza e 9,4 milhões na extrema pobreza. Um cenário vergonhoso para o nosso país e que mostra o alto grau negativo de atenção que damos para esses jovens.
Ainda, segundo a Abrinq, 16,4% das adolescentes são mães antes dos 19 anos; 70% das crianças de zero a três anos não têm vaga em creches; 11,7 mil crianças e adolescentes foram vítimas de homicídios em 2017; 116 crianças morrem por dia no Brasil – a maior parte por causas evitáveis.
O Observatório do Marco Legal da Primeira Infância, lançado recentemente, que trata de assuntos relacionados a crianças de 0 a 6 anos de idade, mostra que quase a metade das crianças com até cinco anos no Brasil vive em casas pobres, onde a renda mensal não chega a meio salário mínimo por pessoa.
Muitas das crianças no Brasil são forçadas a trabalhar em plantações e carvoarias, nas ruas de grandes cidades, vendendo balas e pirulitos nos sinais: trabalho escravo e infantil. Segundo o IBGE, existem mais de 2,4 milhões, entre 5 e 17 anos, nessas condições subumanas e impiedosas.
Em dez anos, mais de 550 mil crianças e adolescentes foram vítimas de exploração sexual. Muitas violentadas. Em 2019, foram 17 mil casos no país, mas o número pode ter sido bem maior devido à subnotificação e ao preconceito social e racial.
O país tem de incluir 1,5 milhão de crianças, de zero a 3 anos, em creches até 2024, conforme a Meta 1 do Plano Nacional de Educação. Esse plano ainda previa que crianças de 4 e 5 anos estivessem matriculadas na pré-escola até 2016 — o que não aconteceu até hoje.
No início de 2020, o UNICEF alertou sobre o problema da evasão escolar no Brasil. Esse órgão da ONU apontou que mais de 2 milhões de crianças e adolescentes poderiam não retornar para uma sala de aula neste ano letivo.
A pandemia da Covid-19 fez emergir uma realidade: crianças pobres não têm acesso a internet, computador, tablet e celular, o que prejudicou o ensino e o aprendizado a distância. Cerca de 4,8 milhões de crianças e adolescentes, entre 9 e 17 anos, compõem esse cenário. A disparidade entre os que possuem condições é gigantesca.
De acordo com a Pnad Contínua 2017, cerca de 1,9 milhão de crianças e adolescentes continua fora da escola no Brasil. A maioria são pobres, negros, quilombolas e indígenas. E por serem vulneráveis acabam perdendo outros direitos básicos que estão garantidos pela Constituição Cidadã.
O Brasil possui um instrumento dos mais eficazes dos direitos humanos da criança, com reconhecimento internacional. O Estatuto da Criança e do Adolescente precisa ser respeitado pelos governos – federal, estadual, municipal – e colocado em prática na sua totalidade.
Ele garante condições especiais, em cada ciclo da vida, para que, assim, as crianças e adolescentes tenham um desenvolvimento pleno. Garante também direito à convivência familiar e comunitária e direito a crescer livre de violência, opressão, discriminação e tratamento desumano.
A regulamentação da Lei da Renda Básica de Cidadania, com certeza, será fundamental para que as famílias possam ter alternativas de renda e de trabalho. Ela é necessária para preservar a vida de milhões de crianças, seja na segurança alimentar, seja no impedimento do trabalho infantil.
Neste 12 de outubro – Dia da Criança – temos que fazer um enorme esforço e refletirmos profundamente a atual situação da criança no país. Esses problemas, e há tantos outros que poderia citar aqui, são, infelizmente, invisíveis para grande parte da nossa sociedade.
Temos que ser radicais e intransigentes na defesa dos direitos da criança e do adolescente. Sem essa condição, que passa, necessariamente, por decisões políticas, governamentais e de Estado, dificilmente conseguiremos modificar esse triste cenário de insensatez e desumanidade.
Cabe a cada um de nós aumentar a perseverança ao máximo, insistir para que o Poder Público priorize e dê mais atenção às nossas crianças e aos nossos adolescentes, dando maior ênfase em investimentos no orçamento da União e em políticas públicas.
Continuo a deixar que a criança da minha infância, de longos invernos e primaveras, rios da minha adolescência, amores sem fim, viva em meu peito e mostre o caminho que tenho que seguir.
Assim, vou vivendo, dia após dia, valorizando as coisas simples da vivência e do aprendizado, ouvindo, sonorizando, rabiscando os meus sentimentos acompanhado da bela canção que Taiguara nos deixou…
“O tempo passa e atravessa as avenidas. O fruto cresce, pesa e enverga o velho pé. O vento forte quebra as telhas e vidraças. O livro sábio deixa em branco o que não é. Que as crianças cantem livres sobre os muros”.
Artigo originalmente publicado no Jornal do Brasil