ARTIGO

Paulo Paim: Sobre violência e racismo

Manifestaçõesnão vão resolver o problema, mas poderão abrir uma porta que se mantém fechada
Paulo Paim: Sobre violência e racismo

Foto: Alessandro Dantas

Vamos partir da seguinte premissa: o Estado existe para servir aos cidadãos. Quando ele é ineficiente nas suas obrigações, omisso na construção de políticas públicas de saúde, de saneamento básico, de educação, de segurança, de geração de emprego e renda e de proteção social, ele se torna um indutor de violência, de racismo e de toda forma de discriminação e preconceito.

A concepção de Estado, como temos hoje no Brasil, vem de mais de três séculos. O Poder sempre esteve nas mãos de poucos, sejam grupos econômicos ou ideológicos. Na Colônia foi assim, no Império e na República idem. Nascemos juntos aos senhores da Casa Grande e ainda continuamos vivendo sob o teto das senzalas.

Essa estrutura que estende a mão ao cidadão e abre os braços ao convívio diário contém adornos e revestimentos de opressão. As leis são colocadas em prática com a tinta e a pena de uns poucos e seus interesses particulares ou individuais; outros, na sua grande maioria, esperam as observâncias de tal ordenamento, o que não ocorre: pobre e negro vão sempre para a cadeia.

A violência e o racismo são explícitos, estruturais da sociedade, mesmo que o Estado queira esconder e faça o máximo para não enxergar, olhos vendados, como que, em uma alta absolvição. Mas eles estão aí, violência e racismo, no cotidiano, na miséria que se alastra pelo País, na falta de moradia descente, no caminhar do negro e do pobre que é vigiado, na tortura que mata, nas favelas e periferias onde há repressão oficial.

As instituições estão nesse contexto.  O mundo da política é um exemplo. A violência e o racismo se dão pelo silêncio do olhar e pela mão cumprimentando ao longe, pela inquisição de palavras. Só quem é discriminado e segregado sente, no suor que se desprende da pele, o significado dessa dor e humilhação. Elas também se dão nas escolas, nas universidades, no trânsito, no ônibus, no metrô, nos supermercados, nos hospitais, nas praças, nos bancos, nos clubes sociais.

As polícias militares são centenárias. Elas foram criadas em tempos de guerra e de demarcação das nossas fronteiras, período da escravidão, dos senhores donos de léguas de terras, nas chamadas revoluções e golpes, no enfrentamento político com a violência, em que tudo se resolvia abaixo da força. Essa estrutura militarizada nos acompanha até hoje. Temos que acabar com a cultura do “atira primeira e pergunta o nome depois”. O País precisa de uma polícia que saiba lidar com as pessoas, que tenha compromisso com o social, mais humanizada e cidadã. Luther King dizia que “temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos”.

Recentemente tivemos a morte do menino João Pedro, de 14 anos. Está na nossa memória, ainda pedindo respostas, as vidas ceifadas dos jovens Kauan, Jenifer, Cilene, Ágatha, Kethelen, e tantos outros anônimos. O assassinato de Marielle até hoje não foi solucionado. Não podemos nos esquecer da morte brutal de um operário, pobre e negro, em Porto Alegre, em maio de 1987, portanto, há mais de 30 anos, na saída de um supermercado. Esses casos não podem ser tratados como questões meramente naturais e de páginas policiais, como sempre a sociedade encaminha e faz de tudo para que a própria sociedade acredite. Não, eles não são.

A historiadora Ynaê dos Santos tem a opinião de que o racismo brasileiro tem uma dimensão institucional mais difícil de ser alcançada. “É um Estado que se fundamenta no trabalho escravo. Pensa sua existência a partir do mito de fundação das três raças, ‘harmonia’ recuperada quase um século depois pelo mito da democracia racial. Esse processo esconde a violência da miscigenação contra negras, indígenas e mestiças”.

Nós não conseguimos aprender com as nossas próprias feridas, nossas chagas abertas não são suficientes para que possamos olhar para a nossa realidade e nos manifestar. Precisamos de que o mundo lá fora nos paute para debatermos abertamente a questão do racismo. O debate tem que ser permanente, pacífico, inclusivo, educador, orientador, libertador. Não suportamos mais essa cultura e estrutura do Estado de violência, de racismo e de impunidade. Há grilhões a serem rompidos e há feridas expostas que ainda não cicatrizaram.

Fizemos várias tentativas para diminuir a discriminação e avançarmos na questão racial por meio das políticas públicas em governos anteriores: políticas afirmativas e de inclusão, cotas, Programa Universidade para Todos (PROUNI), Estatuto da Igualdade Racial e Social, entre outras.  Mas tudo é ainda muito embrionário. Acreditamos que toda a sociedade precisa se envolver e a educação precisa ter esse olhar sobre a diversidade que existe em nosso país.

Quando defendemos a democracia, temos que falar do racismo, da discriminação, da violência; quando defendemos a Constituição, temos que lembrar o genocídio indígena e negro; quando defendemos a paz e a solidariedade, temos que levantar memoriais aos jovens que, todos os dias, são vítimas de balas perdidas.

A violência e o racismo são decisórios na atuação das instituições e até mesmo como uma maneira de se manter as desigualdades sociais e a alta concentração de renda do País, o que têm matado sonhos de presentes e futuras gerações.  Por isso, a nossa missão é enorme: reeducar o Estado para agir com olhos humanos, solidários e amorosos.

As manifestações pacíficas cumprem um papel fundamental, pois elas dão visibilidade à questão e vemos a juventude se mobilizando e exigindo seus direitos e uma vida com dignidade.  Essa mesma juventude que já vimos nas Diretas Já, na Constituinte e em outros momentos importantes é que está fazendo a diferença. É ela que poderá pressionar o Estado para que políticas públicas sociais e de inclusão sejam levadas a todos os brasileiros.

Com as manifestações, surge uma luz no fim do túnel. Elas não vão resolver o problema, não sejamos ingênuos, mas poderão abrir uma porta que, até hoje, se mantém fechada. Temos que esperançar e lutar sempre. Correr contra o vento, levantar nossas bandeiras aos céus e buscar a afirmação do que acreditamos.

Artigo originalmente publicado no Brasil 247

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