A concessão de três grandes aeroportos brasileiros à iniciativa privada pelo governo Dilma vem produzindo um festival de sandices variadas. No FEBEAPÁ conservador que se seguiu ao anúncio há de tudo: críticas ao PT por ter “demonizado” o tema das privatizações em épocas eleitorais, diatribes contra a posição “ideológica” dos que se opuseram à sanha privatista de governos tucanos e afirmações bombásticas, à la Fukuyama, de que o debate sobre as privatizações está “encerrado” e que os privatistas “ganharam”.
De sua parte, o governo e o PT vêm fazendo um esforço para mostrar que há uma abissal diferença entre as privatizações realizadas na década de 90, que se caracterizaram pela transferência definitiva do patrimônio público à iniciativa privada a um preço aviltado, e a concessão feita pelo governo Dilma, sem transferência de patrimônio, por tempo limitado, com preços alentados, e cercada de cuidados administrativos, políticos e jurídicos.
Pois bem, muito embora essa distinção técnica entre privatização “estrito senso” e concessão seja tecnicamente correta e relevante, parece-nos que o debate que está pautado em todo o mundo sobre as privatizações vai muito além dessa mera questão técnica e semântica.
Na realidade, o que vem sendo debatido há algum tempo é se as privatizações feitas na esteira do predomínio recente do paradigma neoliberal produziram os efeitos desejados. Também se discute quais os limites que a intervenção direta do Estado na economia deveria ter e qual o papel que a iniciativa privada pode desempenhar na eventual prestação de funções e serviços públicos. A questão essencial, no entanto, tange à necessidade de que o Estado não perca, em nenhuma circunstância, a capacidade de implantar políticas públicas em quaisquer setores econômicos que julgar relevantes, seja para promover o desenvolvimento nacional, seja para incorporar setores excluídos aos benefícios proporcionados por serviços públicos.
A este respeito cabe assinalar, em primeiro lugar, que a iniciativa privada tem, obviamente, uma importante função em qualquer país capitalista. E o capitalismo, ao menos aparentemente, não está mais em discussão no Brasil. O que está em debate, desde o fracasso do modelo neoliberal nestas paragens e no mundo inteiro, é qual tipo de capitalismo nós queremos. Se o capitalismo selvagem, predatório, concentrador e desregulado, que levou o planeta a sua pior crise desde 1929, ou uma outra forma de capitalismo que, recuperando os princípios do “capitalismo regulado” da Era de Ouro à qual se referiu Hobsbawn, consiga tirar o mundo da crise e promover nova era de prosperidade, com sustentabilidade social e ambiental.
O debate sobre as privatizações se insere, portanto, neste debate maior. A depender das distintas diretrizes dadas por esse debate fundamental, o papel do Estado e da empresa privada no desenvolvimento e a modelagem de eventuais processos de privatização serão bem diferentes.
Em relação a isso, há, assinale-se, exemplos históricos muito contrastantes. Os mais elucidativos tangem à União Soviética é à China, economias de monopólio estatal que migraram, de diferentes modos, em tempos históricos também bastante diferenciados, para distintas “economias de mercado”.
Na antiga União Soviética, o colapso político do regime levou a um processo célere e descontrolado de transição para a “economia de mercado”. Aconselhados por economistas ocidentais e, em alguns casos, pela vodka, os dirigentes da época resolveram vender às pressas muitas empresas e abrir a economia aos investimentos e à concorrência internacional. A ideia básica era realizar uma “terapia de choque”, um “choque de gestão” que aumentasse rapidamente a eficiência econômica geral e assegurasse, por outro lado, a consolidação de um regime democrático, já que as duas coisas, “economia de mercado” e “democracia”, eram identificadas como sinônimos. Seduzidos pela miragem neoliberal, os dirigentes acreditaram que, em pouco tempo, dada a sua sólida base industrial e a aos seus vastos recursos naturais, a Rússia se tornaria uma pujante economia capitalista.
O resultado, porém, foi um completo desastre. Em apenas cinco anos (1990 até 1994), a economia russa encolheu 76%. O desemprego e a informalidade, praticamente inexistentes no período do anterior, chegaram a níveis estratosféricos e até a expectativa de vida dos habitantes encolheu drasticamente. Criou-se uma espécie de “capitalismo mafioso”, que produziu vários bilionários corruptos e uma vasta população de deserdados e perdedores. E o novo Estado, extremamente fragilizado e apoderado por interesses privados, perdeu a sua capacidade de implementar políticas públicas consistentes.
Já a China fez o oposto. Em primeiro lugar, ignorou completamente o ideário neoliberal, tão em voga na época, e resolveu construir seu próprio caminho. Cautelosamente, foi implementando aos poucos o que se chama lá de gaizhi ou “mudança do sistema”, que inclui a diversificação das formas de administração das empresas, seja pela privatização, seja pela descentralização. Em todos os casos, no entanto, houve a preocupação de manter a centralidade do Estado na gestão estratégica da economia.
Hoje em dia, a China tem três grandes tipos de empresa. Há as grandes empresas estatais, concentradas em algumas áreas chave, como sistema financeiro, energia, telecomunicações, etc. Tais empresas ditam o ritmo da acumulação na China e fazem os grandes investimentos estruturantes. Há também as empresas que se associam às empresas estrangeiras que têm tecnologia avançada, mediante joint ventures. Nesses casos, as empresas estrangeiras participam do mercado chinês tendo como contrapartida necessária a efetiva disponibilização de suas tecnologias. Esse esquema vem permitindo à China desenvolver tecnologia moderna e inovadora em vários campos importantes, como na informática e na indústria automobilística. Por último, há empresas, em geral privadas, que atuam em áreas novas, não exploradas pelo Estado.
Mas, mesmo nesse último caso, a influência do Estado é grande. E por quê? Porque na China o crédito é vastamente estatal. O Estado tem o rígido controle do sistema financeiro e do crédito, que é oferecido em condições facilitadas às empresas, desde que elas cumpram as políticas públicas. Por isso, a conservadora revista The Economist chama o capitalismo chinês de “capitalismo confinado”. No entanto, foi justamente esse capitalismo confinado que transformou, em menos de três décadas, um país agrário na segunda maior economia industrial do planeta. Deng Xiaoping, o grande artífice da abertura chinesa, dizia que não importava a cor do gato, o importante era que caçasse ratos. Pode-se acrescentar que, na China, os gatos de todas as cores caçam os ratos que o Estado quer, e na forma como o interesse publico exige.
E no Brasil? Em nosso país, assim como em boa parte da América Latina, as privatizações se deram, tal como na Rússia, no auge do predomínio do paradigma neoliberal, que exigia a imolação do Estado, a abertura incondicional das economias e, em muitos casos, a “flexibilização” de direitos trabalhistas e previdenciários. Assim, ao contrário do que se diz, as privatizações aqui nunca foram exatamente uma “questão de eficiência”, mas sim uma “questão ideológica”. Exigia-se a rápida implantação do Estado mínimo e do receituário do Consenso de Washington para impedir que o país perdesse o “trem da História”, propiciado por uma globalização irreversível e benéfica. De um modo geral, não houve planejamento adequado e nem a preocupação de manter a capacidade do Estado de implementar políticas públicas consistentes. A ordem era simplesmente vender ou conceder. E fazê-lo rápido, de modo a fazer caixa para o país endividado. A suposição ideológica do processo era a de que a iniciativa privada é sempre mais eficiente do que o Estado e, portanto, o resultado inexorável seria, em quaisquer circunstâncias, a melhoria e o barateamento dos serviços, bem como o aumento da competitividade geral da economia. Os dirigentes brasileiros e russos se aconselharam com os mesmos economistas.
Entretanto, o resultado dessas privatizações/concessões açodadas e ideológicas foi, de um modo geral, ruim. Os preços obtidos nos leilões foram normalmente baixos, como no caso da Vale, por exemplo. Houve transferência maciça de patrimônio público e, no caso específico das concessões, verificou-se, a posteriori, aumento exagerado das tarifas e baixa qualidade dos serviços prestados. O resultado mais negativo foi, contudo, a perda da capacidade do Estado brasileiro de implementar políticas públicas nos setores privatizados. Isso ficou bastante evidente, recentemente, no caso das telecomunicações, sempre mencionadas pelos defensores daquelas privatizações como um “grande êxito”. Com efeito, a implantação do Plano Nacional de Banda Larga, estratégico para o país, exigiu a recriação da Telebrás, pois as grandes empresas privadas do setor resistiam, e ainda resistem, a fazer os investimentos necessários, principalmente nas áreas mais pobres do Brasil.
Na Argentina, ocorreu a necessidade de reestatizar totalmente algumas empresas, como as Aerolíneas Argentinas, por exemplo, para poder manter os serviços funcionando, dada a administração desastrosa e irresponsável dos grupos econômicos privados que assumiram tais funções. No Brasil, a fragilização só não maior porque houve grande resistência, capitaneada, entre outros, pelo PT, à privatização do sistema financeiro e de algumas empresas estratégicas, como a Petrobras.
E é justamente por causa desses resultados, em geral negativos, apresentados pelas privatizações realizadas nos anos 90 no Brasil e na América Latina, que o processo privatista não tem uma boa imagem pública. Assim, quando os defensores daquelas privatizações acusam o PT de demonizá-las para fins eleitorais, eles estão implicitamente reconhecendo o fracasso do processo. Com efeito, se o processo das privatizações feitas no contexto ideológico-político do neoliberalismo tivesse sido verdadeiramente exitoso, com benefícios claros para a população e o país, o PT e outros partidos de esquerda não poderiam usá-lo contra seus adversários. Seria o contrário: os partidos conservadores utilizariam o exemplo “evidentemente exitoso” das privatizações contra seus adversários, inclusive o PT. Por que jamais o fizeram?
Tal fracasso não significa, é óbvio, que numa economia capitalista como a brasileira, não se possa fazer novas concessões para que a iniciativa privada atue. O PT, em suas administrações municipais e estaduais, sempre fez ou manteve concessões à iniciativa privada, como na área do transporte público, por exemplo.
Por certo, só o tempo dirá se as concessões dos três aeroportos brasileiros serão verdadeiramente exitosas e redundarão em melhores serviços e preços módicos para o consumidor. Porém, está claro que, neste caso específico, houve, ao contrário do que acontecia no passado, a preocupação de cercar-se de cautelas e de manter a estratégica capacidade do Estado implantar políticas públicas para o setor. Dessa forma, caso as empresas não deem as respostas adequadas, não temos dúvidas de que o processo será revertido, assim como não temos dúvidas também que, caso tais concessões tivessem sido feitas pelos privatistas ideológicos de antanho, não teria havido essa mesma cautela e, junto com a prudência e racionalidade, o patrimônio da Infraero teria sido devidamente vendido na “bacia das almas”.
Numa coisa as viúvas ideológicas do falido paradigma paleoliberal têm razão: o verdadeiro debate sobre as privatizações terminou. Ganharam aqueles, como o PT, que foram críticos do modelo neoliberal e das privatizações ideológicas e que sempre se bateram por um Estado forte que assegurasse, nas políticas públicas, a inclusão dos historicamente excluídos, com ou sem a participação da iniciativa privada. Já aqueles que se curvaram, por interesse ou ideologia, às exigências de um capitalismo desregulado e que fizeram o possível para reduzir politicamente o Estado, concentrar renda e inviabilizar a construção de um projeto estratégico viável para o país perderam. Perderam o debate e as eleições.
Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança do PT no Senado