ARTIGO

Quando as folhas do outono continuam caindo

Passados cinco anos da sanção presidencial, o Estatuto da Pessoa com Deficiência está sendo colocado em prática?
Quando as folhas do outono continuam caindo

Foto: Reprodução

O Estatuto da Pessoa com Deficiência — Lei Brasileira de Inclusão nº 13.146/2015 — completou cinco anos de existência no dia 6 de julho. É um dos mais importantes instrumentos de emancipação civil e social dessa parcela da sociedade, que consolidou as leis existentes e avançou nos princípios da cidadania.

Ele nasceu e foi legitimado por pessoas com deficiência, nos encontros, nas trocas de experiências, nos anseios e sonhos de muitas vidas, nas reflexões, no diálogo com pais e mães, filhos, irmãos, familiares e amigos que, lá atrás, se entrelaçaram na busca do mesmo horizonte, como assim faz “o vento que vai para o sul, e faz seu giro para o norte”.

Foi uma longa jornada construída por muitos e que está se fortalecendo e aprofundando suas raízes no despertar de cada dia, em projetos de vida que hoje não são mais esquecidos pela diversidade da própria história.

O Estatuto possui 127 artigos que dizem respeito à saúde, à educação, ao trabalho, à habilitação e reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, entre outros. Indica também penalização para quem o descumprir. E aqui abro parêntese para informar que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), são mais de 45 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência em algum grau.

Alguns pontos em destaque: atendimento prioritário em situação de socorro; disponibilização de pontos de parada, estações e terminais acessíveis de transporte de passageiros e garantia de segurança no embarque e no desembarque. As frotas de empresas de táxis devem reservar 10% de veículos acessíveis, sem cobrança de tarifa adicional.

Há outros pontos também: reserva de 3% das unidades habitacionais que utilizarem recursos públicos; estímulo ao empreendedorismo e ao trabalho autônomo com disponibilidade de linhas de crédito; oferta de ensino em libras e braille no sistema público, com espaços arquitetônicos acessíveis; espaços culturais e esportivos que devem atender às normas de acessibilidade universal.

A questão que vou colocar aqui é a seguinte: passados cinco anos da sanção presidencial, o Estatuto está sendo colocado em prática? O Estado e os governos o respeitam? Toda lei social existe para ser a vanguarda dos avanços da qualidade de vida das pessoas. A sociedade brasileira tem que se empoderar efetivamente desse instrumento.

Este projeto de sociedade não é somente para as pessoas que convivem hoje com a deficiência pois, queiramos ou não, o tempo se encarregará para que todos e todas tenham essa ou aquela deficiência.

Nesses cinco anos, o Estatuto tem pautado as discussões sobre o tema deficiência, modificando, por exemplo, o Código Civil ao criar o conceito da tomada de decisão apoiada. Segundo esse dispositivo, a pessoa que tiver dificuldade para exprimir sua vontade poderá fazê-la com auxílio de outra pessoa de sua confiança.

Além disso, o Estatuto tem feito surgir novas leis como a 13.409/2016, que trata de cotas para o ingresso no ensino superior. Ainda precisamos avançar na regulamentação de vários artigos do Estatuto. E aí vem o chamamento à toda a sociedade e aos movimentos sociais: força política e pressão democrática junto aos poderes de decisão.

Nestes tempos de pandemia, o Estatuto se mostra ainda mais necessário. O artigo 10 dessa lei considera a pessoa com deficiência especialmente vulnerável em caso de risco, emergência ou calamidade pública, sendo dever do Estado garantir sua proteção. Ou seja, onde o isolamento e o distanciamento são as palavras de ordem, garantir a proteção da pessoa com deficiência significa principalmente subsidiar os recursos para sua sobrevivência, quando essa não pode ser garantida por seus familiares. Outra ação importante é a promoção do trabalho remoto, garantindo a acessibilidade dos meios de comunicação e recursos de informação.

Importante destacar nesse contexto atual que o isolamento recomendado pelas autoridades da área dificulta a reabilitação e tratamento de saúde aos quais as pessoas com deficiência precisam se submeter. Além disso, a necessidade do apoio de outros para a sua locomoção ou atividade da vida diária coloca as pessoas com deficiência em maior risco. Também não podemos esquecer que essas pessoas podem possuir comorbidades, o que as coloca no grupo de risco para a covid-19.

Segundo o secretário geral da ONU, António Gutierrez, as pessoas com deficiência somam cerca de 1 bilhão em todo o mundo. Entre quem está abaixo da linha da pobreza, 20% são pessoas com deficiência. Para ele, a desigualdade se intensifica nesses tempos de pandemia. As diferenças existentes na distribuição de renda e no acesso à educação e à cultura se agravam nos dias atuais. Ele ainda afirma que uma resposta à pandemia não pode deixar de fora as pessoas com deficiência. Por isso destaco, mais uma vez aqui, o artigo 10 do Estatuto.

O governo federal e os governos estaduais e os municipais precisam dar maior atenção aos impactos da pandemia na vida das pessoas com deficiência. Não podem se omitir diante de uma situação que também atinge essas pessoas.

É preciso ressaltar as muitas conquistas do Estatuto, mas os desafios ainda são enormes. A inclusão social com cidadania e a acessibilidade universal vêm sendo conquistadas, mas precisamos avançar ainda mais. Sabemos que este projeto de sociedade não é somente para as pessoas que convivem hoje com a deficiência pois, queiramos ou não, o tempo se encarregará para que todos e todas tenham essa ou aquela deficiência. A acessibilidade universal humaniza e por isso precisa estar nas ruas, no sistema de transporte, no sistema de ensino, na cultura, no trabalho, na comunicação e na informação. O Estatuto provoca a inclusão do Estado e da sociedade para com esse segmento.

O pensador Theodore Zeldin, na obra “Uma história íntima da humanidade”, diz que “vida alguma pode ser considerada plenamente vivida se não tiver se beneficiado de todos os encontros de que é capaz. Hoje, a esperança se sustenta, acima de tudo, pela perspectiva do encontro com novas pessoas”.

E sobre isso eu lembro que, naquele dia 6 de julho de 2015, início de inverno, as folhas do outono ainda continuavam caindo. Talvez um sinal de que esse desejo de felicidade que reside na alma de cada um de nós, por si só, move montanhas e aproxima corações. A nossa gente vem se encontrando consigo mesma por meio do reconhecimento político das diferenças culturais, sociais e individuais. Isso é o belo da vida.

Precisamos evoluir e não mais apenas deixar pegadas do amadurecimento da nossa existência. É como sempre digo: do individual se chega ao todo, ao coletivo, e assim seguimos adiante, acreditando na vida, pois ela nos ensina que, quando tudo parece dar errado, sempre haverá um sol nascente.

Quero lembrar aqui de amigos e amigas que também fazem parte deste momento: Flávio Arns, Mara Gabrilli, Romário Faria, Celso Russomano, Maria do Rosário, Humberto Lippo (in memoriam), o Conade e o Movimento Nacional das Pessoas com Deficiência. A todos vocês meu eterno abraço, com a justeza e a certeza que o caminho a seguir é o de perceber o ser humano em sua força e fragilidade, numa nova forma de compreender que a diversidade não separa ninguém, mas junta e une a todos e a todas, num sentimento de pertencimento e amor.

Artigo originalmente publicado no Nexo Jornal

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