Equidade

Raça e gênero são o centro do debate sobre trabalho, dizem especialistas

Pesquisadoras Cida Bento, Marilane Teixeira e Ana Claudia Cardoso apontam a necessidade de se incluir a equidade racial e de gênero em toda e qualquer política pública para reconstruir o mundo do trabalho e após a destruição que se seguiu ao golpe de 2016
Raça e gênero são o centro do debate sobre trabalho, dizem especialistas

Foto: Alessandro Dantas

A primeira mesa do seminário Resistência, Travessia e Esperança, realizado nesta terça-feira (22) pelo Partido dos Trabalhadores, apontou a necessidade de se colocar as questões de raça e gênero como pontos centrais do debate sobre trabalho, emprego e renda dentro de um projeto de reconstrução e desenvolvimento do Brasil.

O evento, organizado pelas Lideranças do PT no Senado e na Câmara, Instituto Lula, Fundação Perseu Abramo e Secretaria Nacional Sindical do PT, tem como tema “Trabalho, emprego e renda na centralidade do projeto de desenvolvimento do país” e foi acompanhado por mais de 200 militantes de forma virtual.

Sob a coordenação do senador Paulo Paim (PT-RS), a primeira mesa debateu os diagnósticos do mundo do trabalho com três especialistas no setor, que foram unânimes em afirmar que não é possível projetar políticas públicas para o mundo do trabalho sem levar em consideração o que toda pesquisa aponta: a histórica diferença entre as condições de trabalho nos cortes por raça (negros X brancos) e gênero (mulher X homem).

“Em qualquer dimensão que olharmos para o desemprego, precarização do trabalho e etc, qualquer pesquisa vai mostrar que mulheres e negros estão em pior situação. É uma invariável, não uma variável”, afirmou Cida Bento, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades e pesquisadora da USP.

Para ela, é fundamental nomear as condições de trabalho entre os diferentes grupos. “Temos um histórico de desigualdade que perpassa toda a história do Brasil. Me preocupa muito discutir trabalho, emprego e renda sem nomear as condições de trabalho”, disse.

Cida Fontes citou o exemplo da Espanha, que colocou a equidade racial e de gênero no centro da proposta que resgatou proteções trabalhistas por meio de um acordo nacional que envolveu trabalhadores, empregadores e governo.

“Por isso retomei uma proposta que defendo há muito tempo que é adotar os debates quadripartite, envolvendo empregadores, trabalhadores, produtores de políticas públicas e movimentos sociais, para tudo o que se pensa e estuda de solução para combater a desigualdade no trabalho”, sugeriu.

“Queria chamar atenção para quando a gente consegue falar num país em que temos a maioria negra e a maioria mulher. Se num universo um majoritário de pessoas, há determinadas situações ignoradas, a análise fica comprometida. Por isso é fundamental essa agenda estar sempre presente”, insistiu.

Discrepâncias

Números alarmantes apresentados pela professora Marilane Teixeira, doutora em Economia e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Unicamp, demonstram a importância do assunto.

Citando dados do IBGE, ela apontou que, em 2021, a proporção das pessoas com 14 anos ou mais que estavam fora da força de trabalho do país (desemprego, subemprego, etc) era de 32,5% entre homens brancos, contra 51,7% entre mulheres negras.

Além disso, a taxa de subutilização da força de trabalho (quando e pessoa trabalha menos do que poderia) no último trimestre de 2021 ficou em 18,5% para homens brancos, contra 41% para mulheres negras, e a taxa de desocupação no mesmo período foi de 9,8% para homens brancos e de 20,1% para mulheres negras.

“Estamos tratando de problemas estruturais e históricos que exigem uma reversão da estrutura produtiva no Brasil. Mesmo as melhoras ao longo dos anos 2000, com os governos do PT, não foram suficientes para reverter o quadro de profunda desorganização do mercado de trabalho das décadas anteriores”, analisou.

Para Marilane Teixeira, o Brasil precisa de mudanças estruturais profundas, e alertou que o caminho será longo. “Não é uma recuperação de 2% ou 3% do PIB que vai promover mudança no desemprego e na desocupação. Nos encontramos hoje no patamar mais elevado da história”, disse, lembrando ainda que existe uma relação direta entre pessoas que não conseguem acessar o mercado de trabalho e sua condição socio-econômica, ou seja, quanto menor a renda per capita, mais difícil de encontrar uma colocação.

Uberização

Por sua vez, a pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora e doutora pela USP, Ana Claudia Moreira Cardoso, trouxe o debate para o dia a dia atual que chacoalhou o mundo do trabalho nos últimos anos: o movimento de uberização, ou seja, o avanço das plataformas de serviços baseadas na ausência de relação de trabalho entre empregador e trabalhador e, portanto, de qualquer direito trabalhista.

Para ela, esse movimento é resultado também da perda de direitos dos trabalhadores no Brasil e no mundo por meio do que chamou de “deformas trabalhistas”, baseadas no mesmo tripé: “ampliar o tempo de trabalho, criar formas de contratação precárias e reduzir a capacidade sindical”.

Nem seria preciso dizer, mas a pesquisadora reforçou a presença do quesito raça nesse novo modelo de trabalho precário: os negros são 55,5% dos trabalhadores em plataformas, enquanto os não negros somam 44,5%.

Ana Claudia definiu esse modelo como “externalização” do trabalho – um passo além da terceirização –, no qual “a produção, as responsabilidades, os gastos e os custos laborais ficam para os trabalhadores, suas famílias e o Estado”.

As características, segundo a pesquisadora, são “o rápido crescimento para diversos setores da economia, a precarização do trabalho, com baixa remuneração, ausência de direitos, proteção social e com restrição aos direitos organização e negociação, desigualdade sócio-digital, concentração das plataformas com impactos nos pequenos negócios e desequilíbrio social com redução de arrecadação de impostos e aumento de gastos, como em saúde.

O enfrentamento a essa nova realidade deve passar, na opinião de Ana Claudia, pela regulação tributária, ambiental, trabalhista e de consumo. “A questão principal é discutirmos a soberania digital e a governança democrática digital”, defendeu.

Além disso, ela é contra a criação de legislações específicas para cada setor, o que poderia enfraquecer ainda mais um sistema já desigual. “O argumento usado é o de que são setores muito heterogêneos, mas os setores tradicionais também são e mesmo assim temos legislação e convenções de trabalho que tratam dessa heterogeneidade. Se fizermos leis específicas, vamos estar admitindo que existam profissões e trabalhadores de segunda classe”, concluiu.

Para o senador Paulo Paim, que coordenou o debate, o Brasil precisa de forma urgente revogar a série de ataques sofridos pelos trabalhadores, com retiradas de direitos e precarização do trabalho.

“A Espanha iniciou uma nova legislação na linha da revogação da reforma trabalhista, e aqui também defendemos algo nesse sentido. Sou o relator do Estatuto do Trabalho no Senado. Precisamos avançar na regulamentação do teletrabalho, combater o famigerado trabalho intermitente e fortalecer a fiscalização do trabalho escravo, que nesse governo avançou muito”, afirmou.

Paim defendeu ainda a retomada do projeto de lei 130, que obrigava as empresas a igualar a remuneração de homens e mulheres em funções idênticas. “Foi aprovado no Congresso e foi à sanção, mas conseguiram devolver para a Câmara, onde está engavetado”, lembrou.

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