“O governo está negligenciando o atendimento às comunidades tradicionais. A pandemia está pegando em cheio os nossos povos indígenas e tradicionais. Essa negligência escancara o racismo que existe contra negros e indígenas, algo mais explícito com o atual governo”. A avaliação é do senador Paulo Rocha (PT-PA) e demonstra o pouco apreço que Jair Bolsonaro e seu governo tem pelas minorias no Brasil.
As populações negras e indígenas já foram alvos de ataques preconceituosos desferidos por Bolsonaro. Mas o abandono de políticas públicas direcionadas a essas populações e a pandemia do novo Coronavírus têm sido uma combinação letal.
De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), divulgados no site Quarentena Indígena, até a última quarta-feira (24), a Covid-19 havia matado 339 indígenas e contaminado 7208 de 110 povos diferentes. O primeiro caso confirmado de contaminação por Covid-19 entre indígenas brasileiros foi de uma jovem de 20 anos do povo Kokama, no dia 25 de março, no município amazonense Santo Antônio do Içá.
Para tentar dar uma resposta adequada à situação, o Congresso aprovou o PL 1.142/2020, de autoria da deputada Rosa Neide (PT-MT), criando o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas, além medidas de apoio às comunidades quilombolas e aos demais povos e comunidades tradicionais durante a pandemia. O plano será coordenado pelo governo federal.
“Estão deixando até mesmo esses povos passando fome. Este projeto vai forçar o governo a agir para proteger e garantir alimentos a populações desassistidas”, explicou o senador Paulo Rocha.
A taxa de mortalidade pela Covid-19 entre os indígenas da Amazônia Legal é 150% maior se comparado à média nacional, de acordo com uma análise feita pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam) divulgada na segunda-feira (22).
Teoria da conspiração
Durante a reunião ministerial do último dia 22 de abril, divulgada pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, relatou que pessoas estariam contaminando povos indígenas propositalmente com o novo Coronavírus a fim de dizimá-los.
“Eu fui lá para a Amazônia e para Roraima para acompanhar o primeiro óbito [pela covid-19]. Nós recebemos a notícia de que haveria contaminação criminosa em Roraima e na Amazônia, de propósito, em índios, para dizimar aldeias e povo inteiros para colocar a culpa nas costas do presidente Bolsonaro”, disse a ministra Damares.
A ministra afirmou que foi necessário fazer ali uma ação “meio que sigilosa” com a Polícia Federal, porque, segundo ela, “eles” [e não fica claro quem são “eles”] precisavam matar mais índios para dizer que a política bolsonarista não estaria dando certo.
Em entrevista para a AFP, o cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó, afirmou que o governo Bolsonaro tem se aproveitado da pandemia para eliminar seu povo.
“O presidente Bolsonaro quer aproveitar e está falando que o índio tem que morrer, que os índios têm que acabar. Aqui no Brasil, as autoridades nunca pensaram em remover um paciente nosso para ser tratado e curado em hospital de Brasília para depois retornar bem para sua aldeia”, disse o cacique.
Situação quilombola
A situação dos povos quilombolas não se difere da população indígena diante da pandemia e o descaso do atual governo. No Brasil, há cerca de 6 mil localidades quilombolas, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Enquanto dados oficiais continuam escassos, as comunidades têm usado a união e mobilizado redes de doações para tentar burlar carências históricas como acesso a um sistema de saúde e saneamento básico.
De acordo com dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), publicada no site Quilombo Sem Covid-19, o Brasil tinha, até a última quarta (24), 84 óbitos de quilombolas decorrente da Covid-19, 723 casos confirmados e 190 casos monitorados registrados em 11 estados.
“Comunidades quilombolas se tornam mais vulneráveis à Covid-19 devido, principalmente, às desigualdades raciais e socioeconômicas vivenciadas por este grupo populacional”, resume Lucelia Luiz Pereira, doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília (UnB).
“Se esse vírus continuar com essa força total, quilombos inteiros serão dizimados”, diz a Conaq.
Com intuito de tornar mais claro o impacto da pandemia sobre a população negra e, a partir dos dados, construir políticas públicas efetivas, o senador Paulo Paim, que também é presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), apresentou o Projeto de Lei (PL 2179/2020). A ideia da proposta é tornar obrigatório que órgãos e instituições de saúde promovam o cadastramento de dados relativos a marcadores étnicos-raciais, idade, gênero, condição de deficiência e localização dos pacientes atendidos em decorrência da infecção pelo novo Coronavírus.
“Existe um acesso desigual ao SUS e [essas populações] sofrem de forma mais intensa com a ausência de atenção e disponibilidade de redes de atenção primária”, diz Lucelia Luiz Pereira, que é membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Racismo compromete atendimento
Além da dificuldade de acesso à rede de saúde, os quilombolas enfrentam ainda outro problema quando conseguem atendimento médico: o racismo.
Anacleta Pires leciona há 30 anos no quilombo Santa Rosa dos Pretos. Mas, ao precisar de atendimento no hospital Adélia Matos Fonseca foi questionada por uma funcionária se sabia assinar o próprio nome.
Sua filha Zica disse já ter ouvido de um médico que “esse povo da roça não sabe lavar o pé direito”.
Wendel Marcelino, do quilombo Buriti do Meio, engrossa o coro. “É um racismo [porque] os pacientes que chegam na unidade de emergência não são atendidos da maneira certa”, relata.
Lucelia Pereira explicou, em entrevista ao UOL, que isso acontece porque “o racismo é um dos determinantes dos processos de saúde e doença, o que torna as comunidades quilombolas mais vulneráveis”.
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