Em entrevista exclusiva, senadora pelo Piauí fala das motivações do golpe, do crescimento do seu Estado e da representação das mulheres na políticaO Brasil conta com um Plano Nacional de Educação (PNE) desde 2014, aprovado após um longo processo de debates que teve como marca negativa o bloqueio da discussão sobre a igualdade de gênero por parte dos setores obscurantistas que têm crescido no Congresso Nacional.
A vedação ao debate afetou o potencial de transformação do PNE, retirando da pauta a fundamental discussão de formas de valorizar a mulher e de acabar com o tratamento desigual em relação aos homens.
“Vai discutir [a questão de gênero] aonde, se não for nas escolas?”, dispara a senadora Regina Souza (PT-PI), que tem histórico de atuação na área educacional. Ela defende que é o espaço escolar, apoiado pelo ambiente familiar, que reúne as condições adequadas para que, desde criança, as brasileiras e brasileiros aprendam a conviver com a igualdade.
Isso vale também para a política. “O espaço público tem que dividir [com as mulheres]“, diz a senadora. “Somos mais de 50% da população, como é que vamos ser 10% de parlamentares? Não tem lógica.”
Na avaliação feita por Regina Souza em entrevista exclusiva à Agência PT, a desigualdade de gênero tem levado à violência contra as mulheres, porque o homem acha que é proprietário do corpo, da vontade e da vida das mulheres. Por isso, ela apresentou projeto para criação de Centros de Reeducação do Agressor, para evitar a reincidência de crimes de violência contra as mulheres.
A misoginia é um dos fatores, segundo Regina Souza, que levaram ao golpe de Michel Temer contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff. Outro motivo forte é o medo das elites de continuidade do projeto de Brasil do PT, encampado pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma. Esse medo está fazendo o neoliberalismo ser ressuscitado no país.
E foi justamente o modelo de crescimento com inclusão social dos governos Lula e Dilma que possibilitaram a criação das condições para reduzir as desigualdades, inclusive as regionais. O Nordeste viu sua presença fortalecida, e o Piauí, Estado de nascimento da senadora que começou como quebradeira de coco, conquistou hoje um patamar invejável.
“É o Estado que mais cresce no Brasil, tem margem inclusive para se endividar, poucos Estados têm isso. Pode fazer empréstimo com o Banco Mundial e ainda tem margem de endividamento”, conta sorridente a senadora.
Leia abaixo a entrevista completa:
A sra. tem origem como quebradeira de coco, depois foi professora e atuou no movimento sindical no Piauí, uma história muito valiosa. Por sua origem e histórico de atuação, o que representa o golpe contra a presidenta eleita Dilma Rousseff?
Representa em primeiro lugar a ganância das elites que nos toleraram por oito anos e achavam que não ia adiante o projeto. Quando viram que o projeto ia adiante e tinha possibilidade de ir mais além, se mexeram para resolver as questões deles. Também tem um fato de ser mulher, que influencia. A misoginia de dizer que mulher não pode, mulher não sabe, isso também é um componente.
Mas o principal é esse: o medo de continuar um projeto totalmente contrário do que defendem. Está vendo o neoliberalismo ressuscitando no Brasil. Morto no chamado primeiro mundo e ressuscitando aqui. Antes do PT, o que era esse país? As propostas que estão sendo colocadas em prática hoje são exatamente as que foram interrompidas em 2002.
Um dos olhares desse projeto iniciado com Lula e Dilma é um olhar para o Nordeste, para Estados como o Piauí que vivem uma discrepância regional muito grande. Como a sra. percebe o povo do Piauí neste momento político negativo?
Ando muito meu Estado, todo fim de semana eu viajo para pelo menos quatro municípios, às vezes, vou a nove cidades. O que eu vejo é o pessoal indignado, inconformado. Onde a gente chega, as pessoas vão ouvir a gente, a pauta é o golpe. E não reúno só o PT, reúno o povo da cidade e os auditórios têm ficado lotados.
O tema é esse, e a gente sente a indignação, muitos depoimentos mostrando que, por mais que a direita queira negar, o problema é que nosso projeto é visível, palpável, qualquer cidadão comum sabe explicar a mudança que houve neste país nos últimos 12 anos. Por isso o preconceito com o Nordeste, que talvez seja a região mais beneficiada por esse projeto, onde se vê tudo o que aconteceu.
E as pessoas estão se perguntando por que estão tirando a Dilma. Ouvi um depoimento de que “foi com o Lula que o Brasil olhou para mim”. Um depoimento belíssimo, que diz que a partir do governo Lula o Brasil começou a olhar para as pessoas mais pobres. No Nordeste, a popularidade de Dilma e do Lula é alta, as pessoas pedem a volta do Lula.
Meu Estado era o patinho feio e deixou de ser, é o Estado que mais cresceu no Nordeste e continua crescendo, mesmo com todo o problema econômico, continua crescendo porque as políticas foram aplicadas da forma correta. Há um estudo do Ipea que mostra como tem consistência a mudança social no Piauí.
Fale um pouco mais desse projeto que a sra. ajudou a construir no Piauí.
Junto com o Lula, entramos com o governador Wellington Dias no governo do Piauí. Fui a secretária de Administração, a pasta mais complicada porque eu tinha que ser durona (risos). Mas o resultado veio depois. A gente organizou o Estado, foi a primeira coisa. Fomos mudando o Estado, organizando, ao mesmo tempo em que a questão do crescimento econômico era colocada, uma preocupação com o investimento.
O Piauí é outro. Você anda hoje no Estado e vê. Uma pessoa que conheço e voltou para o Piauí me disse que, depois de tantos anos, ficou impressionada que encontrou estrada. Ficou impressionada, porque quando veio era barro, carroça, poeira. O Estado está todo pavimentado hoje, as estradas interligadas, e é um Estado que cresce.
Mas é o Estado que mais cresce no Brasil, tem margem inclusive para se endividar, poucos Estados têm isso, pode fazer empréstimo com o Banco Mundial e ainda tem margem de endividamento.
Se esse governo permanecer, que espero que não, vai ter muitos problemas com a população mais pobre principalmente, porque experimentou o gostinho de colocar o pé na Casa Grande e não vai querer voltar para a senzala mais não.
A sra. é autora de um recurso ao arquivamento do processo contra o senador Romero Jucá no Conselho de Ética por ter sido pego em conversas gravadas afirmando que era preciso um pacto para “estancar a sangria” a Lava Jato. O recurso foi negado pelo presidente do conselho, que é do mesmo partido de Jucá, o PMDB. O que significa para o Senado, num momento como este, com o aparecimento de áudios com Jucá articulando o golpe, não cassar o mandato de Jucá por quebra de decoro?
É estarrecedor que ninguém se pronuncie. O procurador-geral da República pediu a prisão [de Jucá], e o Supremo Tribunal Federal poderia responder dizendo pelo menos que não há motivo para a prisão. Tinha que ter uma manifestação, porque ele envolveu o Supremo como um todo, fez uma exceção, que foi o ministro Teori Zavascki.
E não teve resposta, a sociedade também não se preocupou. Eu vi a reação com Delcídio do Amaral. E o áudio do Delcídio é café pequeno comparado com o áudio do Jucá. Fiz um pronunciamento nesse sentido, estranhando o silêncio.
Por isso, falamos em dois pesos e duas medidas. Não é nada pessoal, apenas acho que tem que ter o mesmo tratamento para a gente poder dizer que há justiça pelo menos nesta Casa.
A sra. também integra a Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher e a cada dia que passa se conhece um caso novo de violência contra as mulheres. Há também uma violência que não envolve agressões físicas. Uma violência alimenta a outra?
Estou preocupada com o Brasil porque está se instalando um sentimento muito ruim, que é o ódio. Fui relatora da avaliação da política pública de combate à violência contra a mulher. Produzi um relatório grande, publicado pela Comissão de Direitos Humanos do Senado, e a gente tem a impressão de que não avançamos nada.
Tudo o que está acontecendo faz a gente pensar que estava encoberta a violência, agora as mulheres estão denunciando. Está aí o exemplo recente da Luiza Brunet, que criou coragem para denunciar que era espancada. É uma questão muito séria.
Avançamos nas políticas de combate à violência contra a mulher? Avançamos. Principalmente no governo Lula, os instrumentos foram criados, os espaços foram criados. Agora, com muita pressão, mantiveram algumas secretarias, mas as mantiveram isoladas, sem conexão uma com a outra.
Políticas públicas ajudam, leis ajudam, como a que propus dos Centros de Reeducação do Agressor, que é uma novidade na Lei Maria da Penha. E há experiências vitoriosas de pessoas que há cinco anos não reincidiram, reconstruíram relações. Isso é bom, mas demora e a geração vai crescendo.
O caminho é a educação, não tem jeito. É educar menino e menina como iguais. Isso se discute é na escola, porque é a criança que aprende. O adulto você tenta concertar, o próprio adulto se policia, mas o adulto se espanta de dizer coisas preconceituosas, porque está na cabeça, é cultura, difícil de desconstruir. Criança não, se não constrói essa cultura, vai crescer considerando homem e mulher iguais.
A sra. pode detalhar como funciona o projeto de reeducação do agressor?
A gente estava se satisfazendo só em prender, em aplicar a Lei Maria da Pena na questão da reclusão. Prende o agressor, mas uma hora ele vai sair. E a Lei Maria da Penha prevê reeducar o agressor. A partir daí, criei o projeto de lei para os centros de reeducação. O agressor sai, ou mesmo durante a prisão, ele já frequenta o centro, para sentir, e tem que ter uma equipe multidisciplinar, que ele precisa mudar. E que se continuar praticando, volta para a prisão.
São experiências que a gente trouxe aqui e são promissoras para que os Estados façam isso. Como tem a Casa da Mulher Brasileira para acolher a mulher. No mesmo lugar, vai encontrar tudo, até creche para ele deixar a criança enquanto é assistida. Precisa ter também o Centro de Reeducação do Agressor.
A sra. considera que ainda estamos num momento inicial no debate sobre a violência contra a mulher?
Diria que avançou bastante com os espaços institucionais criados. Mesmo no movimento de mulheres, que estão exigindo mais. A própria Lei Maria da Penha é fruto dessa luta. A gente pressiona os governos pelos espaços institucionais, casa de abrigo, coordenadorias de mulher, agora os tribunais estão criando suas coordenadorias também, então, tem um avanço. Mas há um pensamento retrógrado querendo destruir isso.
Foi o que aconteceu na discussão sobre o Plano Nacional de Educação. Proibir discussão de gênero nas escolas. Vai discutir aonde se não for nas escolas? Fomos derrotados nisso.
Em vários Estados, tiraram a palavra gênero dos planos de educação, nos municípios e Estados. Sempre que faço palestra eu digo “a sala de aula é do professor”. Então, sempre conclamamos os professores a não cair nessa, porque isso é fundamentalismo atuando contra a discussão mais aberta. Não vamos discutir com menino de quatro anos, de cinco anos, sexo. Vamos discutir a relação na família entre homens e mulheres. Dizer que o espaço público também é da mulher. Para cada idade, um conteúdo correto, mas desde cedo, para crescer um adulto sem preconceitos.
Vi um vídeo em que colocavam um texto para uma criança negra ler que era negra e feia, e a criança chorou e disse que não tinha coragem de dizer aquilo. Porque ela não nasceu assim, mas vai construindo um sentimento racista ao ouvir o pai dizer.
O governo golpista começou escolhendo seu ministério ilegítimo sem nenhuma mulher, o que revelou o descaso com os altos índices de agressões registrados contra as mulheres. Por outro lado, muitos atos contra o golpe tiveram a força das mulheres à frente. O futuro da democracia e da política brasileira será feito pelas mulheres?
Com certeza. As mulheres estão assumindo o seu protagonismo, tomando conta dos espaços públicos, ainda com muita resistência masculina. Mas o debate tem que ser de todo mundo, não pode ser pauta feminina. Se a gente debate com os homens, eles também vão aprender a debater e vão também ajudar na educação dos filhos. As mulheres têm esse papel.
Somos 13 senadoras apenas, mas ê mulheres barulhentas (risos). Parece que somos metade do plenário, então esse protagonismo já está colocado. A participação na política é um trabalho que estamos fazendo, tem que ser candidata. Por que não? O espaço público tem que dividir, somos mais de 50% da população, como é que vamos ser 10% de parlamentares? Não tem lógica.
Ele [Temer] só recriou a Secretaria da Mulher por pressão, porque a gente ficou sem saber onde se ver, um governo só com homens. E onde é que negro, índio, quilombola, mulheres, juventude vai se enxergar? Ele recriou, mas ainda está difícil chegar, porque botou alguns espaços ligados ao Ministério da Justiça onde ele colocou um xerife [Alexandre de Moraes].
Com informações da Agência PT de Notícias
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