A aprovação da PEC de Combate ao Trabalho Escravo permite que a delegação brasileira chegue numa situação muito especial à Conferência da Organização Internacional do Trabalho, que será realizada em Genebra até o próximo dia 12: somos um dos raros países no mundo a ter inscrito em sua Constituição Federal regras claras para punir, com a perda da propriedade, os responsáveis pela prática de trabalho escravo. Esta é uma grande vitória, sobretudo se recordarmos a história de nosso país.
Nos mais de três séculos de escravidão no Brasil, a comercialização de seres humanos era permitida pela legislação e estimulada como política pública. O país mantinha seu modelo econômico baseado na força de trabalho de pessoas escravizadas. Esta prática foi tão marcante em nosso desenvolvimento que até hoje são encontradas pessoas submetidas a condições análogas a de escravo em diversos setores da cadeia produtiva.
Este, portanto, não é um tema novo na agenda do Estado. Já na década de 1970, organizações da sociedade civil, especialmente a Comissão Pastoral da Terra, denunciaram trabalho análogo ao de escravo em áreas de expansão agrícola. O Estado conseguiu mobilizar as primeiras ações na década seguinte, quando inscreve em sua Constituição Federal o conceito de “função social” da propriedade aliado ao respeito às relações de trabalho, “favorecendo o bem estar de proprietários e empregados”. A prática foi incorporada à agenda estatal não mais como problema localizado, mas como uma questão social, devido à frequência das denúncias.
Em 1995, reconhecendo a necessidade de ser proativo no combate ao trabalho escravo, o Estado brasileiro, instrumentalizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que em estreita parceria com o Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal e Ministério Público Federal, passou a operar para o resgate de trabalhadores, a aplicação de sanções administrativas, a recomposição de patrimônio de trabalhadores e fornecimento de provas para a judicialização dos casos.
Em 2003, o Brasil, em sua opção definitiva pela estruturação dos pilares dos Direitos Humanos, dá um passo decisivo no combate às formas análogas a de escravo. Para acompanhar as ações nessa área, criamos a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo – Conatrae, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Composta por órgãos do governo e entidades da sociedade civil, a comissão passou a acompanhar as políticas públicas, os projetos de cooperação e os trâmites legislativos relacionados ao tema.
Os resultados da atuação da Conatrae no fortalecimento dos Planos Nacionais foram imediatos. O Estado brasileiro passou a buscar soluções amistosas para casos emblemáticos, sendo que alguns se arrastavam há décadas. Em paralelo, criamos o Dia e a Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, assim como fomentamos a instituição de 13 Comissões Estaduais para a Erradicação do Trabalho Escravo. Dentro deste esforço, realizamos dois encontros nacionais para debater o tema, criamos o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, em parceria com 150 empresas comprometidas em combater o trabalho escravo em suas cadeias produtivas, e, por fim, mas não menos importante, a Conatrae elabora o Cadastro de Empregadores (conhecido como “lista suja”), como forma de prestar contas das ações desenvolvidas.
A “Lista Suja” tem sido um instrumento fundamental para o combate ao trabalho escravo no país. Ela relaciona os empregadores flagrados com esse tipo de mão de obra e que tiveram oportunidade de se defender em primeira e segunda instâncias administrativas, antes de ser confirmado o conjunto de autuações que configuraram condições análogas às de escravo. Uma vez na “Lista Suja”, a empresa fica impedida de receber financiamento público.
Outra ação efetiva para a erradicação do trabalho escravo no Brasil tem sido a profícua parceria com o poder Judiciário. De 2009 pra cá, realizamos 32 oficinas de capacitação para juízes do Trabalho, em todas as regiões do país. As comissões estaduais promovem ações parecidas. O objetivo é sensibilizar os magistrados para a importância de estarem atentos a este tipo de violação de direitos humanos, seja no ambiente rural ou urbano.
Estas ações estatais têm mudado a realidade do país. No entanto, o Brasil ainda sofre com práticas análogas à escravidão, que violam a ética constitucional e as relações trabalhistas, mas também atenta contra os princípios de mercado, como a concorrência leal. Em outras palavras, empregadores e empregados perdem com o trabalho escravo porque, de um lado, os empregados são afastados de seus direitos; de outro, os empregadores com boas práticas ficam em desvantagem econômica, já que cumprem suas responsabilidades com encargos trabalhistas de seus funcionários, enquanto que alguns concorrentes desleais garantem lucros indiretos.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, atualmente existem cerca de 20 milhões de pessoas submetidas a formas contemporâneas de escravidão em todo o planeta. No Brasil, 46.478 trabalhadores foram libertados desde 1995. Vamos seguir trabalhando até que esta prática odiosa seja definitivamente erradicada em nosso país, pois como disse a Relatora Especial das Nações Unidas sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, Gulnara Shahinian: “O Brasil tem muita vontade e potencial para erradicar a escravidão e garantir a proteção necessária a todos submetidos à escravidão no país. Essas pessoas não podem esperar mais”.
Publicado no jornal Valor Econômico