O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou parcialmente procedente a Ação Cível Originária (ACO) 312, que discutia a anulação de títulos de propriedade de terras localizadas na área da Reserva Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, no sul da Bahia. A Funai (Fundação Nacional do Índio), autora da ação, alegou que a área é ocupada desde tempos remotos pelos índios pataxó-hã-hã-hãe. Por maioria, os ministros consideraram nulos os títulos de propriedade localizados dentro da reserva.
A votação seguiu o voto proferido pelo relator do caso, ministro Eros Grau (aposentado), no início do julgamento, em 2008. Na sessão de hoje (2), em que foi retomado o julgamento, acompanharam o entendimento do relator as ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Rosa Weber, e os ministros Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Celso de Mello e Ayres Britto. O ministro Marco Aurélio divergiu e votou pela improcedência da ação.
Ao pontuar seu voto com o do ministro Eros Grau, primeiro a se posicionar sobre o assunto, a ministra Cármen Lúcia informou que ele julgou a ação da Funai totalmente procedente, mas, na prática, também se limitou a anular os títulos de propriedade com glebas localizadas dentro da área da reserva indígena. “No final, vamos chegar à mesma conclusão”, disse, ao explicar que o pedido da Funai incluía propriedades localizadas fora da terra indígena.
A ministra Rosa Weber acompanhou, na essência, o voto do relator. Ela, entretanto, votou pela improcedência da ação em relação aos títulos que fazem parte da área não integrante da terra indígena. Tais propriedades foram excluídas por antropólogo designado pelo ministro Nelson Jobim (aposentado), quando relator da ACO, para efetuar um levantamento sobre a real extensão da área indígena. Isso porque suas propriedades ficaram fora da área a ser reintegrada para ocupação pelos índios. No mesmo sentido se pronunciou o ministro Joaquim Barbosa.
Na sequência, o ministro Cezar Peluso votou pela procedência parcial da ação para declarar nulos todos os títulos de propriedades cujas glebas se situem dentro da área indígena Caramuru-Catarina Paraguassu. Ele esclareceu que a procedência parcial deve-se ao fato de julgar improcedente a ação em relação aos réus cujos títulos têm por objeto glebas situadas fora da reserva indígena.
“Em consequência, julgo carecedores das reconvenções os réus cujos títulos têm glebas situadas fora da área da reserva indígena, porque, para afirmação da validez de seu título perante a causa petendi (causa de pedir), basta a improcedência da demanda, porque se declara que a Funai não tem direito de anular o seu título”, disse o ministro.
Em seu voto, o decano do STF, ministro Celso de Mello, afirmou que as perícias antropológica, agronômica e topográfica revelam que a área efetivamente disputada tem sido habitada pela etnia pataxó, que mantém uma relação especial com as terras da Reserva Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu. O ministro considerou que a diáspora (dispersão) ocorrida tempos atrás na região não comprometeu a identidade indígena, tendo em vista que os pataxós se mantiveram na região, “conscientes da vinculação histórica com o seu próprio território”.
O ministro Celso de Mello salientou que ninguém pode se tornar dono de terras ocupadas por índios, que pertencem à União e, como tais, não podem ser negociadas. Ele lembrou que a Constituição Federal não prevê pagamento de indenizações aos eventuais ocupantes dessas áreas, apenas o ressarcimento pelas benfeitorias feitas de boa-fé. O decano também se referiu ainda à necessidade de observância do disposto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), documento internacional mais recente sobre o tema, da qual o Brasil é signatário, que preserva os direitos de grupos tribais e os protege contra remoções involuntárias.
Ao acompanhar o voto do relator, o presidente do STF, ministro Ayres Britto, ressaltou que, para o índio, a terra não é um bem mercantil, passível de transação. “Para os índios, a terra é um totem horizontal, é um espírito protetor, é um ente com o qual ele mantém uma relação umbilical”. O ministro-presidente lembrou que, não por outro motivo, a Constituição Federal proíbe a remoção de índios, permitindo-a excepcionalmente mediante autorização do Congresso Nacional e em caráter temporário.
Divergência
O ministro Marco Aurélio foi o único a divergir sobre o pedido formulado na Ação Cível Originária (ACO) 312. O ministro votou pela improcedência da ação e pela validade dos títulos de propriedade concedidos na área pelo governo da Bahia. Com isso, contrariou os votos anteriormente proferidos no julgamento, todos eles pela procedência da ação e pela improcedência das reconvenções formuladas no processo pelos não índios ocupantes de áreas situadas dentro da reserva indígena, demarcada em 1938 pelo então Serviço de Proteção aos Índios (SPI, desde 1967 sucedido pela Funai), mas não homologada como tal.
O ministro Marco Aurélio disse que a ACO, protocolada no STF em 30 de novembro de 1982, foi ajuizada sob vigência da Constituição Federal de 1967, na redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional 1/69. E, de acordo com ele, o pedido contido na ação não preenche o pressuposto básico contido no artigo 186 da Carta de 1967, que é o de ela ser habitada por indígenas. Dispunha aquele artigo que “é assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”.
Segundo o ministro, entretanto, na época do ajuizamento da ação (1982), a área reclamada para os índios pela Funai só era intermitentemente – não de forma permanente – ocupada por índios, mas sim por não índios. Ele se reportou, nessa afirmação, a relatório de antropólogo incumbido de verificar a área, sua ocupação e definir sua localização exata e em quais municípios baianos se situavam. De acordo com tal relatório, ao contrário do que declarava a ação inicial da Funai, a área dita indígena não se espalhava por sete municípios, mas ocupava apenas partes de três.
Além disso, ainda conforme aquele relatório citado pelo ministro Marco Aurélio, no período entre 1936, anterior à demarcação, e 1969, portanto, ainda abrangendo a regência da CF de
Assim, conforme o relato citado pelo ministro Marco Aurélio, na época do ajuizamento da ação, a área reclamada pela Funai era ocupada pelo que o relatório denominou de “forasteiros”, isto é, não índios. “Não se trata, aqui, do resgate, considerando a violência contra os indígenas, porque é impossível o retorno ao status quo ante (à situação anterior), quando eles ocupavam exclusivamente o território do Brasil”, afirmou o ministro Marco Aurélio. Para ele, trata-se de interpretar a CF de 1967.
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